Todas as cores do arco-íris

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Anna Paula Vencato*
Sopa de letrinhas: Movimento homossexual e a produção de identidades coletivas nos anos 90, de Regina Facchini. Editora Garamond, 2005. 304 p.
GLT, GLS, HSH, MSM, GLBT, GLBTT [1], são algumas das diversas siglas adotadas pelo Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) ou outras instâncias (como o Estado, ONGs, pesquisadores, agências de fomento etc.) para referir diversas categorias identitárias que circularam e circulam pelos espaços da militância homossexual, assim como para designar (por vezes como categorias de auto-referência) os diversos sujeitos que não se encaixam no modelo identitário heterossexual convencional ao longo do tempo.
O título do livro de Regina Facchini, Sopa de letrinhas, é uma apropriação feita pela autora da crítica jocosa realizada por alguns veículos de comunicação de massa acerca da proliferação de letras e siglas relacionadas ao MHB. Contudo, ao invés de sublinhar esta jocosidade da crítica, a autora se apropria do termo em outro sentido: traçando através de uma análise minuciosa, assim como cuidadosa do histórico do MHB desde seu início, na década de 1970 até a análise do Grupo CORSA (Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor), do qual fez parte e etnografou e que é seu objeto central de análise, em São Paulo, na segunda metade da década de 1990.
O livro nos leva a um passeio pela constituição do MHB, através de uma revisão bibliográfica bastante ampla, acerca do movimento homossexual, da produção das ciências sociais brasileira sobre a homossexualidade, da literatura acerca dos movimentos sociais e, especialmente, a partir da formação e trajetória de um grupo militante específico. A revisão bibliográfica encontra-se encadeada com dados e trechos de relatórios produzidos por grupos militantes, por agências governamentais e entrevistas com pessoas que militam no MHB (que ajudaram a formar o movimento – estando nele ainda ou não – ou que militam nele atualmente), que resulta numa análise bastante rica, realizada pela autora, a partir de um material de campo amplo e cheio de nuances bastante complexas. Ainda, através do capítulo etnográfico acerca da constituição e dos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo CORSA, seus conflitos internos e posicionamentos políticos, Facchini nos introduz a alguns dos embates presentes no modo específico de militância daquele grupo levando-nos, contudo, a perceber como este está inserido num contexto mais amplo da militância realizada no país, assim como sujeito a dinâmicas sociais mais amplas.
Regina Facchini realiza uma análise cuidadosa, apresentando discursos que nos revelam como o movimento se constituiu não apenas da reunião de sujeitos que buscavam “lutar por um bem comum” mas, principalmente, dos conflitos gerados pela definição de que “bem comum” seria este, de quais seriam as prioridades do movimento e, especialmente a quem falavam e a quem representavam (ou não). Nesse contexto, nos apresenta uma série de discussões presentes no movimento, sobre a incorporação de financiamentos governamentais, tornar-se ou não uma ONG, inserção nos órgãos governamentais e instâncias decisórias/deliberativas do governo, participação em campanhas públicas relacionadas à saúde (especialmente no que concerne a questão da Aids, que num primeiro momento, ao ser acionada como uma “peste gay” enfraquece o movimento ou lhe gera duvidas acerca da tomada ou não dessa bandeira mas que, num segundo momento, é incorporada por ele e, de algum modo, o legitima dentro de um certo imaginário social que antes talvez nem mesmo pensasse sobre a homossexualidade), aderir ou não a uma política de mercado, aderir ou não a uma política identitária semelhante a de outros países, aderir ou não a uma determinada postura político-partidária, entre outras coisas. Essas discussões vão ser a causa de grandes conflitos, de rachas e reestruturações que o movimento vai sofrer ao longo dos anos, fazendo com que se enfraqueça em dado momento (especialmente no período inicial da epidemia de Aids e da redemocratização do país), mas que, por outro lado, acabam por impulsionar mudanças que permitem ao movimento não desaparecer e voltar a crescer algum tempo depois.
Um aspecto interessante do movimento homossexual apresentado no texto, que permeia todo o livro, é que, historicamente, ele se amplia no país sem a existência de uma coordenação central e com formas bastante variadas, especialmente a partir de divisões internas dos grupos, em processos de aproximação ou afastamento com outros grupos com os quais tenham ou não reivindicações em comum, ou mesmo, das posturas especificas de sujeitos ou grupos de sujeitos que constituem o próprio grupo. Embora existam associações e fóruns de discussões em que vários grupos estejam presentes ou representados, evita-se a formação de um movimento articulado a partir de uma coordenação nacional. Mesmo que nem sempre interessante para o fortalecimento dos grupos, é usual que as disputas e os conflitos estejam sempre em evidencia e sejam publicizados. Nesse contexto, a autora nos alerta para os possíveis impactos e perigos disso num momento em que o movimento alcança cada vez mais espaço na mídia e veículos de comunicação de massa.
Ainda com relação à “sopa de letrinhas”, que é dada a partir da proliferação das identidades em processos de construção e reconstrução dentro do movimento homossexual, a autora nos mostra como esse processo de fragmentação em identidades específicas, ao mesmo tempo em que se pretende (e em algum momento é) um modo democrático de inserção de diferentes identidades no seio do movimento, também é, ao mesmo tempo, uma estratégia para a reivindicação de políticas públicas e legislações específicas para as diversas homossexualidades existentes, assim como uma forma de desenvolvimento de projetos financiados, uma vez que as agências de fomento sempre demandam que os projetos estejam direcionados a algum grupo específico (mas não se pode pensar que são os financiamentos apenas que norteiam o surgimento de cada vez mais letrinhas).
Facchini nos leva, ainda, a realizar uma reflexão crítica sobre os perigos dessa fragmentação e proliferação de identidades, a qual poderia nos levar a uma essencialização das diferenças e a um esvaziamento do sentido político das próprias categorias. Para a autora, uma excessiva fragmentação identitária pode esvaziar a identidade reivindicada e prejudicar a visibilidade de uma categoria grupo (que luta por seus direitos, por espaço, por visibilidade, etc.), ou incorrer no risco de criar diversas categorias estanques. Nesse contexto, nos alerta que “construir a cidadania a partir do reconhecimento da diversidade, enfrentando o dilema entre a ‘cidadania’ e o ‘orgulho/afirmação de diferenças essenciais e estanques’, (…) parece ser o desafio colocado atualmente tanto para o MHB quanto para todos os movimentos que se fundam em demandas especificas de uma ‘comunidade’.” ( p.282).
[1] GLT (Gays, Lésbicas e Travestis), GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), HSH (Homens que fazem sexo com homens), MSM (Mulheres que fazem sexo com mulheres), GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros), GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais).
*Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/UFSC. Doutoranda em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ. E-mail: [email protected].


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