Pedi o divórcio e assumi que sou gay

0

A engenheira Sofia*, de 39 anos, virou a mesa: depois de dez anos de
casada, venceu o próprio preconceito e deixou o marido para namorar
uma mulher. Hoje está sozinha, mas tranqüila com a própria opção
sexual, e confiante de que um novo amor surgirá

\’Eu estava casada havia quase dez anos. Tinha do lado um homem
trabalhador, honesto, paizão e companheiro, mas, aos 37 anos, estava
insatisfeita. Queria sentir de novo o coração pulsar. A primeira
coisa que acabou entre a gente foi a atração sexual, mais ou menos
um ano depois do nascimento da nossa filha.

Nossa cama nunca tinha sido lá essas coisas, é verdade, mas a gente
sempre ouve que vida de casado é assim mesmo, cuidar de filho, de
marido, sogra, mãe… Só que, pra mim, não dava mais para ser \’é
assim mesmo\’. Eu falava: \’Pô, a gente não está legal na cama\’. E ele
me perguntava: \’O que você quer que a gente faça?\’. Mas nem eu mesma
sabia. Só sentia um vazio.

Passei a transar com meu marido quase por obrigação, e meu casamento
foi se acabando. Sei exatamente quando foi dada a última cartada.
Tínhamos acabado de transar e ele levantou pra se lavar, como de
costume. Tinha sido horrível. Fingi que gozei só pra ele sair logo
de cima de mim. Chorei, e pensei: \’Não posso mais. Estou me sentindo
violentada, preciso sair dessa situação\’.

Eu tinha dois filhos -Joana, de 4 anos, e Gabriel, de 7- e
trabalhava numa empresa de informática. Era supervisora de um grupo
de dez pessoas e amava meu trabalho. Um dia, uma colega veio
dizer: \’Vem trabalhar com a gente uma pessoa meio
esquisita\’. \’Esquisita como?\’, perguntei. Ela disse: \’Desconfio que
é lésbica. Parece que mora com uma garota\’. Mal sabia essa colega
que aqueles comentários maliciosos iriam resgatar em mim
sentimentos, fatos e lembranças que eu sempre sufoquei.

Gostar de alguém do mesmo sexo já tinha acontecido comigo quando eu
tinha 20 anos. Marta, uma amiga do bairro, tinha uma namorada e isso
me fez questionar, na época, meus sentimentos por garotos. Eu tinha
meus namoradinhos, mas, como nunca tinha sido \’aquela coisa louca\’,
eu pensava que ainda era muito nova pra saber o que queria. E ver
aquelas duas garotas juntas e felizes me chamava a atenção, era uma
convivência bonita, a delas. Comecei a ver Marta com outros olhos -e
ela correspondeu.

O clima entre nós foi ficando meio evidente, até que ela me chamou
com uma turma pra passar o réveillon na casa dela. Eu estava no
jardim, sozinha, ela veio e me deu um beijo na boca dizendo que era
meu presente de ano-novo. Foi a maior surpresa, eu gostei do beijo
dela, mas aquilo não caiu nada bem pra mim. Só que me apaixonei.

A partir daí, Marta passou a deixar a namorada em casa para fugir
comigo. Eu, para ela, era só farra. Viajávamos para cidades próximas
e dormíamos juntas em hotéis. Eu pensava: \’Isso é que é amar\’.
Durante seis anos, fui amante da Marta e nunca contei a ninguém.
Sofri muito. Eu me preocupava demais com a reação de todos. Já
pensou? Mulata, pobre e ainda por cima homossexual? Pra completar,
eu queria ser a namorada da Marta, e ela não terminava com Lorena.
Então desisti.

Assim que me separei dela, no último ano da faculdade de engenharia,
conheci Paulo, no mesmo curso. Eu tinha 26 anos, e ele, 23. Ele não
me atraiu fisicamente. Parecia comigo na alegria de viver e na
vontade de vencer na profissão. Mulato como eu, nos demos bem logo
de cara e começamos a namorar. Ele gostava de mim como mulher. Eu
não era apaixonada, mas agora queria um amor tranqüilo. Nosso
encontro foi uma fuga, mas eu não tinha noção disso na época. Em
três anos, estávamos casados e cheios de projetos. Larguei no
subconsciente um emaranhado de sentimentos que me agradavam e que,
ao mesmo tempo, me davam pavor.

Mas esse emaranhado voltava à minha cabeça a cada conquista com
Paulo. Depois de um ano de economia, a gente trocava de carro e
ficava feliz, mas depois me batia um vazio. \’Estou casada, tenho
dois filhos, não posso ser lésbica. Vou viver com o Paulo para o
resto da vida\’, eu me enganava.

Quando soube da chegada dessa funcionária \’esquisita\’ no escritório,
tive uma sensação boa. Iria me aproximar de uma pessoa que assumia
sua homossexualidade. Eu queria muito conhecê-la. Ela poderia se
tornar uma amiga e eu, descobrir melhor aquele mundo.

Helena era alta, pele bem clarinha e olhar altivo. Tinha um jeito de
sapatão que me desagradava porque era muito evidente. O cabelo dela
era bem curto, ela nunca usava maquiagem e vestia umas botas mais
masculinas. Como eu era sua chefe, mantive distância no começo. Ela
era dez anos mais velha que eu e parecia bem resolvida, segura de
si. Isso me fascinava.

Uma vez, convidei ela e outras colegas do trabalho para uma happy
hour. Depois de uma caipirinha, pedi pra fumar o cigarro dela.
Começamos a trocar olhares mais diretos e rolou um clima de paquera
entre a gente. Ela me deu o telefone dela. No dia seguinte, depois
de uma noite em claro, decidi que ia falar com ela.

Na saída do trabalho, comprei um monte de cartões e fiquei três
horas e meia em pé, batendo papo com Helena num orelhão. Falamos da
noite anterior por evasivas, eu disse que tinha ficado confusa com
nossos olhares, mas que queria conhecê-la melhor. Ela me chamou pra
ir à casa dela e eu senti medo, ansiedade, tesão, tudo junto. Eu me
sentia a pior das criaturas porque tinha dois filhos e um marido que
me amavam e pensava em outra pessoa, ainda uma mulher. Mas não tinha
mais como voltar atrás.

No dia seguinte, depois do expediente, criei coragem e fui ao
apartamento dela. Helena tinha terminado recentemente um
relacionamento de sete anos e estava bem. Eu cheguei meio sem graça,
mas determinada a colocar pra fora o que estava sentindo. Abrimos um
vinho, começamos a conversar e simplesmente eu deitei no colo dela e
a abracei. Ela ficou imóvel, incrédula, no sofá, até que dei um
beijo nela, longo e suave. Eu nunca tinha beijado alguém com tanta
entrega.

Depois desse beijo, eu enlouqueci. Comecei um jogo de sedução sem
palavras, só com olhares e carinhos. Meio sem jeito, ela jogou
comigo e dali pra irmos pra cama foi um pulo, mas eu não me senti à
vontade. Ainda tivemos mais duas noites sem sucesso absoluto para
ambas. Eu, na minha inexperiência de relacionamentos e acostumada a
fingir orgasmos com meu marido, fazia o mesmo com ela. Só que ela
sacava na hora e me dizia que aconteceria naturalmente. Eu confiava.

Durante quatro meses a gente se encontrava às segundas-feiras, no
apartamento dela. Era nosso dia. Eu inventava desculpas esfarrapadas
para o meu marido. Dizia que ia ao cabeleireiro ou encontrar os
amigos para jogar tranca. Eu e Helena tomávamos vinho, dançávamos,
fazíamos amor, parecia que o mundo parava junto com a gente. Quando
gozamos juntas a primeira vez, chorei de emoção.

Mas voltar para casa era muito estranho. Geralmente, as crianças já
estavam dormindo, eu dava um beijo de boa-noite em cada um, trocava
de roupa e me deitava ao lado do Paulo. Era horrível. Ele não dizia
nada. Às vezes, me abraçava, mostrava que queria ficar comigo, mas
eu dizia que estava cansada. Fui ficando ausente, não conseguia ser
a mesma mãe e dar a mesma atenção que dava aos meus filhos. Morria
de medo de tudo, mas, independentemente do que estivesse por vir, eu
amava aquela mulher.

Do lado dela, o amor também crescia, assim como o sofrimento com
toda aquela situação. Ela, que tinha dado o primeiro beijo numa
mulher aos 12 anos e nunca tinha tido medo da sociedade, enlouquecia
com a minha ind
ecisão. Chorávamos juntas. Às vezes, brigávamos feio
e ela me agredia verbalmente: \’Você nunca vai conseguir assumir\’. Eu
sabia que não podia continuar ignorando a verdade e, depois de muito
sofrimento, concluí que tinha que me separar.

Numa manhã de sexta-feira, chorei muito, saí do banho e fui direto
ao assunto. Disse ao Paulo que não dava mais pra continuar casada
porque eu tinha outra pessoa e era uma mulher. Ele chorou como
criança. \’Como você pode jogar tudo para o alto assim?\’, gritava, no
quarto. Ele falou que já desconfiava porque eu comentava muito sobre
ela, mas achou que isso ia passar, era fantasia. \’Eu te perdôo pela
traição\’, disse, e me veio com propostas loucas. Disse que Helena
podia vir à nossa casa quando eu quisesse e ainda que podíamos
contratar uma mulher para me satisfazer. \’Sei que você gosta da cama
que ela te dá, mas isso passa.\’

Eu não agüentava pensar no quanto ele estava sofrendo e fui covarde
até onde pude. Terminei tudo com ela e viajei de férias com Paulo.
Mas, dias depois, eu não agüentava de saudade e a gente se
reencontrava. Nesse vai-e-volta, nem sei como não aconteceu uma
tragédia. Eu tinha medo de que eles pudessem tentar alguma coisa um
contra o outro, porque às vezes eu estava na casa dela e ele me
ligava no celular, então ela pegava o telefone e pedia pra ele sair
do meu pé. Outra vez, ela estava na minha casa e Paulo apareceu,
então os dois brigaram. Procurei advogados e só fiquei mais
tranqüila quando soube que juiz nenhum tiraria as crianças de mim,
já que eu trabalhava e era boa mãe. Perder meus filhos era o único
motivo que me faria desistir de viver aquilo que o meu coração
queria.

Depois de quase um ano nessa confusão -e achando que talvez eu me
arrependesse e voltasse atrás no futuro-, meu marido aceitou o
divórcio, mas com uma condição: de que eu escondesse dos nossos
amigos o motivo real. Para todos os efeitos, eu o tinha traído. Ele
dizia que era para me proteger, mas eu sabia que era difícil pra ele
aceitar a realidade. Só tive certeza da minha opção sexual depois
que me separei de vez do Paulo. Acho que demorei tanto porque o
preconceito começava em mim mesma, eu não me aceitava. Ninguém da
turma entendia o que tinha acontecido, mas eu tinha feito um trato e
tive que cumpri-lo: me afastei de todos, não dava pra viver em dois
mundos.

Foi uma barra porque, no começo, Paulo disse que não ia sair de
casa. Chegou a ameaçar de sair e levar as crianças, mas, com o
tempo, foi se acalmando e deixou a casa pra mim, pensando em nossos
filhos -eles achavam que o pai tinha se mudado para perto do
aeroporto porque viajava muito. Um tempo depois, Paulo arranjou uma
namorada e eles sacaram que a gente não estava mais junto, mas nunca
questionaram. Foram percebendo aos poucos. Eu e Helena, agora
namoradas, vivíamos às escondidas, e isso me matava. No escritório,
os funcionários faziam piadinhas, comentavam que eu só almoçava com
ela, brincavam que, se rolasse algum problema com Helena, eu
relevaria.

Uns oito meses depois, mudei de emprego. Aí me dei a chance de
contar sobre Helena para minhas ex-chefes e tirei um peso gigante
das costas. \’A gente já desconfiava, mas e daí? Somos suas amigas\’,
ouvi delas. Reconquistar meus amigos sem esconder minha história foi
um dos melhores presentes que eu ganhei.

Por outro lado, quando Helena começou a dormir em casa, caí na
besteira de contar tudo pra minha mãe, que morava comigo. Aos 70
anos, ela não fez cara de espanto, disse que já sabia e que não
tinha problema porque muita gente vivia assim. Mas, na verdade,
nunca aceitou a história e ela e Helena nunca se deram bem. Meus
filhos é que perguntavam por que não podiam dormir comigo quando
Helena estava em casa. \’É porque ela é amiga da mamãe e não tem
outra cama aqui pra ela\’, eu dizia. A gente não se beijava nem
trocava carinho, nada, na frente deles. Eles até hoje não sabem da
minha escolha e acho que vou demorar pra contar porque eles ainda
não têm estrutura.

Durante esse período, Helena ficou meio traumatizada, insegura. Um
telefonema, um compromisso de trabalho, festas infantis na escola,
tudo era motivo para brigarmos. Mesmo assumindo minha
homossexualidade, eu tinha a mesma vida de mãe, de profissional, que
tenho até hoje. Tenho que passar lista de compras para a empregada,
levar os filhos ao clube, e não posso sair toda noite. Helena é
livre e a gente começou a brigar pelas nossas diferenças.

Sugeri que ela viesse morar na minha casa, mas ela não suportava
minha mãe. Seu plano era que eu deixasse as crianças com meu marido
e que fôssemos viver sozinhas. Eu dizia que não tinha condições de
viver sem meus filhos, era uma briga entre o lado mãe e o lado
mulher. Isso foi desgastando a relação até que tivemos uma briga na
minha casa. Entramos no quarto discutindo, ela rasgou umas fotos
minhas e parti pra cima dela. Ela me empurrou, rolamos no chão e nos
batemos. Nesse dia, eu caí das nuvens: não dava mais. Terminei com
Helena um ano depois de ter me separado do meu marido. Virei minha
vida de cabeça pra baixo acreditando que a história com Helena fosse
para a vida toda. E me enganei.

Uns 15 dias depois, tentamos voltar e aí ela concordou em se mudar
pra minha casa -mas eu já não acreditava mais na nossa relação.
Assim como aconteceu com Paulo, meu amor por ela tinha mudado de
forma. Ainda ficamos juntas por mais dois meses, mas aquela coisa
muito boa e forte do começo já tinha dado lugar à muita dor. Talvez
minha história com ela tenha acontecido pra eu quebrar aquela crença
de que \’casamento é isso mesmo, a vida é isso mesmo, não precisa
querer nada mais\’. Precisa sim.

Depois que eu me separei de Helena, há oito meses, fiz amigos
homossexuais pela internet e comecei a enxergar relacionamentos
muito legais, de mulheres e homens que se respeitam, têm filhos,
estão juntos há anos e convivem bem com seus ex. Convivo bem com
Paulo, mas a gente sabe que não tem volta. Quando separei de Helena,
ele até tentou recomeçar comigo. Eu disse que seria triste ele viver
mais 15 anos do meu lado para descobrir que tinha perdido tempo. Eu
não seria capaz de recomeçar com ele só para manter as aparências,
embora eu sinta medo de que os meus filhos sejam discriminados por
terem mãe gay. Mas não valeria a pena matar quem eu sou.

Tenho a impressão de que as pessoas que negam sua sexualidade
rejeitam a si mesmas e vivem uma vida de mentira. Hoje estou
sozinha, mas bem. Mais caseira, sem sair e paquerar, mas feliz,
porque tenho certeza de que vou encontrar alguém dentro da minha
opção. Continuo a mesma de 20 anos atrás, mas estou um pouco mais
zen -eu era mais elétrica. Tenho a mim mesma, sou dona do meu nariz.
Às vezes penso que nunca devia ter fugido disso porque teria poupado
os sentimentos de muita gente, mas foi assim. O preconceito que eu
mesma criei não existe mais. Quando se consegue quebrar essa
barreira, o resto fica fácil. Eu consegui com coragem, loucura e
paixão.\’

Depoimento a Louise Cavallari
* Todos os nomes foram trocados para preservar os envolvidos

VOCÊ TAMBÉM TEM UMA EXPERIÊNCIA EMOCIONANTE PARA CONTAR? ESCREVA
PARA A REVISTA MARIE CLAIRE, \’EU, LEITORA\’, AVENIDA JAGUARÉ,
1.485/1.487, JAGUARÉ, SÃO PAULO, SP, CEP 05346-902. OU ENVIE UM E-
MAIL PARA [email protected]. MANDE ENDEREÇO E TELEFONE. SÓ
PUBLICAMOS HISTÓRIAS VERÍDICAS, DEPOIS DE CONFIRMADAS. SE FOR
NECESSÁRIO, OMITIREMOS SEU NOME.

http://revistamarieclaire.globo.com


Deixe um comentário ou dica do que gostaria que pudéssemos trazer de novidade para vocês. E se curte nosso CANAL faça uma doação de qualquer valor para que possamos continuar com esse trabalho.

PIX: (11) 98321-7790
PayPal: [email protected]

TODO APOIO É IMPORTANTE.

Compartilhar.

Sobre o Autor

Comments are closed.