Muitos desconhecidos me procuraram para dizer que o livro foi importante e que eles se reconheceram na minha história.
Tentei escrever um livro pela primeira vez em 2004. Tinha acabado de voltar de uma viagem a Bancoc, onde encontrei uma população gay grande e muito visível e finalmente senti aceitação. No voo de volta, temendo o retorno à realidade de Déli, senti raiva. O contraste entre a liberdade de Bancoc e o sufoco das estruturas rígidas da sociedade de Déli me fizeram pensar que eu tinha de escrever algo.
Àquela altura, eu ainda não tinha saído do armário para todos meus parentes e amigos. Então escolhi um pseudônimo “seguro” – Bharat I. Sharma – e escrevi algumas páginas, com o objetivo de ir aumentando até ter um livro. Mas, depois de colocar para fora aquelas palavras de ira, tive um bloqueio, como se a sensação de confinamento aqui, mais uma vez, me impedisse de me manifestar.
Com essa dificuldade, a rotina do trabalho e o medo de ser descoberto apesar do nome falso, a ideia do livro sumiu rapidamente.
Em 2009, depois de a Suprema Corte da Índia derrubar a lei que criminalizava o homossexualismo, me senti um pouco libertado e escrevi alguns artigos usando meu próprio nome. Mas foi só em 2013, depois de conversar com o jornalista e meu caro amigo Rumy M Nayaran, que voltei a pensar no livro.
Em nossas discussões, decidimos que um livro de ficção seria a melhor solução: minha mãe, minha família e eu ficaríamos protegidos caso houvesse reações negativas.
Naquela época não tínhamos medo da lei, mas depois a Suprema Corte inverteu a decisão anterior, reafirmando os estigmas associados à homossexualidade. Isso nos obrigou a ser mais cuidadosos. E, depois das primeiras tentativas, descobri que ficção não era para mim. Não conseguia transformar a história da minha vida em uma coleção de cenários e eventos que eram verdadeiros. Abandonei o projeto mais uma vez.
Aí, em agosto passado, algumas semanas antes de completar 50 anos, minha mãe entrou no meu quarto e perguntou o que tinha acontecido com meus planos de escrever um livro. Eu tinha acabado de largar um trabalho como consultor e estava tirando um tempo para mim mesmo.
“Agora que você não tem outros compromissos, pode escrever”, disse ela.
Então ela me lembrou de uma conversa de anos atrás sobre privilégios e estruturas de poder. Na comparação, poderia me sentir muito mais seguro para contar minha história de forma honesta.
É claro que também tínhamos a expectativa que as leis fossem mudar a qualquer momento, derrubando os obstáculos no meu caminho!
Mais que tudo, vi determinação na expressão de minha mãe, um desejo de que eu fizesse algo construtivo. Queria vê-la segurando minha história fisicamente, em suas mãos, na forma de um livro.
Sabia que na Índia existia um vácuo de histórias “reais” como essa, uma autobiografia linear, no que diz respeito à literatura gay. O pouco de conteúdo ‘queer’ que eu conhecia estava em livros de história, contos, ficção e alguns livros acadêmicos, além de um ou outro livro de memórias, como o de Siddarth Dube.
Vários ativistas que conheci ao longo dos anos também me incentivaram. Anjali Gopalan, da Naz Foundation, Maya Sharma, da Vikalp, Gautam Yadav, do Humsafar Trust – todos me disseram que existia a necessidade de um registro histórico.
Minha única preocupação era conseguir de fato escrever um livro, dados meus fracassos anteriores.
Mas não demorou para eu perceber que nada seria capaz de me segurar. Em menos de um mês – entre 29 de setembro e 27 de outubro ―, digitei mais de 66.000 palavras. Talvez meu livro estivesse tomando forma na minha cabeça durante todos aqueles anos, à espera de um momento de concentração para colocá-lo para fora.
Não reli obsessivamente o que escrevi, por causa do meu ritmo acelerado e do período relativamente curto que tive para editar. Como me sugeriram autores experientes, isso provavelmente ajudou o livro a ser sincero.
Se houve algum tipo de literatura que me inspirou quando comecei o primeiro capítulo, foi a autobiografia de Bob Dylan. É claro que sabia que jamais seria um Bob Dylan, mas pelo menos poderia me inspirar em sua obra. Dylan influenciou minha maneira de pensar – suas ideias sobre guerra, capitalismo, sociedade e estruturas de poder.
Mas, como qualquer leitor vai perceber, meu texto ou meu estilo não têm nada de Dylan!
Mas eu sabia que tinha de escrever como sempre escrevi – de forma conversacional, simples e direto. Era a maneira como sempre me dirigi aos colegas da empresa que liderei até janeiro de 2017. Como consultor de comunicação, sempre acreditei que o poder de contar histórias estava na simplicidade da narrativa, mesmo que o tom fosse cru ou que faltassem muitos detalhes. Era o único “estilo” que eu conhecia.
Se uma história pode ecoar junto à minha comunidade e a outras, fazer diferença ou oferecer apoio, então precisamos de mais histórias assim.
Apesar de meu livro já ter sido lançado, não tive a coragem de relê-lo. Os altos e baixos, a angústia que senti ao considerar toda minha jornada me esgotaram. Como dizem os comentários na contracapa, muitas pessoas como eu passaram décadas para construir uma identidade – e no fim das contas sobram poucas forças para encontrar amor.
Toda vez que tive de “promover” o livro, conversando com diferentes grupos de pessoas, tinha de voltar no tempo, lembrar da minha vida. Meu cabelo ficava em pé quando falava dos amigos que perdi para o suicídio, que deixaram o país ou que estavam presos em casamentos heterossexuais. Lembrei também da minha própria tentativa de me matar.
Mas, apesar da força arrebatadora dessas emoções, o que me manteve firme (quando estava escrevendo e também agora) foi o propósito expressado por minha mãe.
Muitos desconhecidos me procuraram para dizer que o livro foi importante. Eles se reconheceram na minha história. Alguns “saíram do armário” para mim, contando suas experiências como bissexuais ou homossexuais. Alguns afirmaram que o livro pode salvar vidas – o que me fez chorar.
“Mas o objetivo do livro não era tocar essas vidas, compartilhando sua história e elementos do movimento LGBT em Déli?”, perguntou ele. Sim, pensei, deixando que o comentário neutralizasse minha tristeza.
Se uma história pode ecoar junto à minha comunidade e a outras, fazer diferença ou oferecer apoio, então precisamos de mais histórias assim. Precisamos de um gênero de literatura próprio. Precisamos de espaço nas prateleiras das livrarias. Precisamos de mais festivais de literatura gay. Afinal de contas, são as histórias que mudam a ideia de existência e diversidade, estabelecendo o fato de que somos só uma variação do “normal”!
*Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do veículo. Mundialmente, o HuffPost oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.
Sharif D. Rangnekar é um consultor de sensibilização de comunicação no local de trabalho, cantor, compositor e autor de Straight to Normal.
*Este texto foi originalmente publicado no HuffPost India e traduzido do inglês.