‘Zapping’: A tática de protesto que desencadeou o ativismo LGBTQ

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Projetadas para perturbar o status quo e obter apoio para os direitos dos homossexuais, estas táticas teatrais incluíam de tudo, desde fatos de pato ao lançamento de tartes.

Por Erin Blakemore

A cantora e ativista anti-homossexual Anita Bryant cobre o rosto depois de ter sido atingida por uma tarte durante uma conferência de imprensa em Des Moines, Iowa, em outubro de 1977. Naquele que se tornaria um dos “zaps” mais infames, os ativistas procuraram embaraçar Anita Bryant por esta liderar uma campanha contra os direitos dos homossexuais.

Fotografia de Bettmann / Getty Images

Em outubro de 1972, Charles Silverstein era estudante de psicologia quando participou num seminário sobre terapia comportamental. O tópico era a terapia de aversão, uma forma pseudocientífica de terapia de conversão na qual os homossexuais eram submetidos a choques elétricos e a outros estímulos para “curar” a sua atração sexual por outros homens.

Mas Charles não estava lá para aprender, estava lá para acabar com o seminário. Quando um psicólogo muito respeitado subiu ao palco, Charles correu para a frente da sala e apresentou-se como ativista homossexual.

“Nós vamos interromper a sua apresentação”, disse Charles ao orador. “Vamos dar-lhe 10 minutos para falar e depois assumimos o controlo.” Charles cumpriu o prometido, gerando o caos na sala de apresentação, enquanto manifestantes e participantes irados começavam a debater o assunto.

O orador tinha acabado de ser “zapped”. Criado por ativistas da libertação homossexual no início da década de 1970, o “zapping” combinava ações de protesto com artes de representação.

Esta tática era aparentemente simples e envolvia uma ação inesperada, ruidosa e breve. Se interrompesse um negócio ou um evento, ainda melhor. Projetados para instigar a cobertura da imprensa e perturbar o status quo, os “zaps” eram teatrais, desordeiros e impossíveis de ignorar. Organizados num curto espaço de tempo, os “zaps” eram uma forma de enfrentar diretamente a discriminação, e recordar à opinião pública a existência do movimento LGBTQ e a possibilidade de orgulho numa identidade marginalizada.

No caso de Charles, a ação foi eficaz; mais tarde, um participante convidou-o para fazer uma apresentação para psicólogos influentes. O ativismo de Charles ajudou a fomentar a eventual remoção da homossexualidade enquanto diagnóstico de distúrbio médico.

“Foi uma época em que lutávamos pelas nossas vidas”, disse Charles, relembrando o referido “zap” durante uma entrevista feita em 2019 na Universidade Rutgers. Embora o apogeu do “zapping” tenha durado pouco tempo, este movimento ajudou a alimentar uma crescente onda de apoio à igualdade LGBTQ. Os ativistas também atribuem o aumento das suas fileiras ao “zapping”.

‘Zaps’ deixam a sua marca

Durante grande parte da história dos EUA, a discriminação e as leis anti-homossexuais eram a norma. A homossexualidade era classificada como um transtorno mental e, antes de 1961, todos os estados criminalizavam a sodomia. As leis eram usadas para justificar ações de fiscalização em bares e parques públicos suspeitos de atividades homossexuais, e as pessoas LGBTQ corriam o risco de humilhação pública, podiam perder o emprego e até enfrentar processos judiciais devido à sua homossexualidade.

Alguns grupos de homossexuais que surgiram durante as décadas de 1950 e 1960 protestaram publicamente contra a discriminação LGBTQ. Mas, embora tenham havido alguns tumultos e confrontos durante esta época, os protestos eram tipicamente demonstrações bem-educadas como o “Lembrete Anual”, um evento anual onde manifestantes em fatos de negócios faziam discretamente piquetes no Independence Hall de Filadélfia numa tentativa de mostrar os homossexuais como membros ordeiros que contribuíam para a sociedade.

Foi então que, no dia 28 de junho de 1969, aconteceu a revolta de Stonewall. Este motim, que começou depois de a polícia ter invadido um bar de homossexuais na cidade de Nova Iorque, galvanizou a comunidade LGBTQ. As frustrações devido à ação policial e ao estigma social transbordaram para o movimento de libertação homossexual. Grupos de ativistas aglomeraram-se por todo o país, e um destes grupos, o Gay Activists Alliance (GAA), surgiu com uma forma simples e extremamente visível de protesto: “zapping”.

O ativista Marty Robinson em 1969

Um mês depois da revolta de Stonewall Inn, o ativista Marty Robinson falou para uma multidão de aproximadamente 200 pessoas, naquele que foi o primeiro comício dos direitos dos homossexuais na cidade de Nova Iorque, no dia 27 de julho de 1969. Apelidado de “Sr. Zap”, Marty Robinson também liderou os primeiros “zaps”.

Fotografia de Fred W. McDarrah, Getty Images

Atribuídos a Marty Robinson, membro do grupo GAA que ficou conhecido por “Sr. Zap”, os primeiros ataques da organização foram direcionados ao então presidente da câmara de Nova Iorque, John Lindsay. Frustrado porque o presidente se recusava a encontrar com os ativistas e evitava fazer comentários sobre a libertação homossexual, o grupo entrou em ação. Desde uma noite de estreia na Metropolitan Opera à gravação de um programa de televisão, o grupo interrompeu de forma implacável os discursos de John Lindsay, e importunou-o durante entrevistas ao vivo e espalhou panfletos nos locais das suas aparições.

“Decidimos que sempre que ele aparecesse em público, ou sempre que conseguíssemos chegar até ele, tornaríamos a sua vida pessoal o mais desconfortável possível e iriamos lembrar-lhe o motivo”, disse em 2004 Arthur Evans, membro do grupo GAA. John Lindsay acabou finalmente por se reunir com o grupo, mas os “zaps” continuaram até o presidente anunciar o seu apoio a um projeto de lei que proibia a discriminação contra pessoas LGBTQ em Nova Iorque em 1971.

Por esta altura, os ativistas já tinham percebido o quão poderosos os seus “zaps” podiam ser. Em 1971, por exemplo, o grupo GAA e o Daughters of Bilitis, um grupo lésbico, focou-se na Fidelifacts, uma empresa sediada em Nova Iorque que fazia verificações sobre antecedentes pessoais e que foi acusada de investigar e ter como alvo trabalhadores LGBTQ.

O presidente da Fidelifacts afirmou que a sua regra para identificar homossexuais era: “Se parece um pato, anda como um pato, só se associa com patos e grasna como um pato, provavelmente é um pato”. Os ativistas – um vestido com um fato completo de pato – marcharam em frente ao edifício, emitindo sons de patos de borracha e distribuindo panfletos. Outros entupiram as linhas telefónicas da empresa durante um dia inteiro, ligando para dizer: “Parem já com os vossos serviços ofensivos!”

Um legado eletrizante

Contudo, estes protestos eram muitas vezes falados na imprensa e alcançavam os seus objetivos, chamando a atenção para a causa. Os “zaps” mais eficazes envolviam figuras públicas que eram envergonhadas devido a injustiças específicas.

Um dos casos mais memoráveis aconteceu durante uma transmissão da CBS Evening News em dezembro de 1973. Perante uma audiência ao vivo de 60 milhões de telespectadores, Mark Allan Segal, membro de um pequeno grupo chamado Gay Raiders e um exímio “zapper”, saltou para a frente das câmaras e ergueu um cartaz que dizia “Homossexuais Protestam Preconceito da CBS”. Mark estava a protestar contra a representação das pessoas LGBTQ por parte da cadeia televisiva e contra a forma como as suas coberturas ignoravam coisas como desfiles do orgulho homossexual e uma legislação de igualdade.

Esta ação funcionou: não só a CBS começou a cobrir questões LGBTQ, como Walter Cronkite se tornou amigo de Mark Segal e começou a relatar as dificuldades e sucessos do movimento.

Outro “zap” digno de referência aconteceu em 1977, quando o ativista Tom Higgins atingiu Anita Bryant, cantora e ativista contra os direitos dos homossexuais, no rosto com uma tarte de morango durante uma conferência de imprensa em Des Moines, no estado de Iowa. Anita Bryant respondeu ajoelhando-se em oração e pedindo a Deus que libertasse Tom Higgins do seu “desvio”; Tom Higgins, satisfeito, disse a um correspondente da Gay Community News que não havia nada mais humilhante do que levar com uma tarte na cara.

Estes primeiros movimentos pela libertação homossexual não queriam apenas alcançar os seus opressores heterossexuais. Os “zaps” também tinham outro público em mente: as pessoas LGBTQ que ainda não tinham aderido à causa. Entre 1969 e 1973, grupos como o GAA inspiraram a formação de quase 800 grupos de gays e lésbicas, diz o cientista político Matthew D. Hindman; no final da década de 1970, já havia mais de 2.000 grupos.

Porém, nesse momento, os “zaps” já tinham quase desaparecido porque os líderes do movimento, enfrentando críticas públicas e lutas internas devido às táticas militantes de protesto, começaram a pressionar pelos direitos LGBTQ à escala nacional através de organizações como a National Gay Task Force (agora National LGBTQ Task Force).

Mas o seu legado sobreviveu e as táticas foram recuperadas no final dos anos 1980, quando os participantes da AIDS Coalition to Unleash Power (ACT UP) começaram uma série de protestos disruptivos que se baseavam nas táticas “zap”. Manifestações onde as pessoas se sentavam, fingiam estar mortas e um protesto ruidoso em que mais de 4.500 pessoas interromperam uma missa católica na Catedral de St. Patrick, todas tinham semelhanças com os “zaps” que as antecederam.

O tempo e a epidemia de VIH/SIDA devastaram as fileiras do primeiro movimento de libertação homossexual. Hoje, o orgulho LGBTQ faz parte da cultura popular e a homossexualidade foi descriminalizada nos EUA. Mas ainda há batalhas para travar, e o ativismo LGBTQ persiste com um arsenal mais amplo de técnicas de protesto, incluindo campanhas nas redes sociais. Estas vitórias podem ser atribuídas em parte às táticas ousadas dos primeiros ativistas.

“É atrevido, arrogante, determinado, obstinado, vai vencer!”, disse Marty Robinson ao autor Kay Tobin em 1972. “Nada acontece até que o façamos acontecer.”
Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site nationalgeographic.com

Natgeo


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