Valéria Barcellos estreia em novela da Globo: ‘Medo. Mas sou travesti e vivo com medo’

0
A atriz trans, que tem mais de três décadas de carreira, conversou com Marie Claire sobre a expectativa de sua estreia em ‘Terra e Paixão’, nova novela das nove. Ela revelou receio de críticas e defendeu um sistema de cotas para pessoa trans.

Por Raphaela Cunha

Depois de vários testes, Valéria Barcellos finalmente vai fazer sua estreia em novelas da Globo. Ela estará em Terra e Paixão, de Walcyr Carrasco, a próxima trama das nove, e viverá a personagem Luana Shine –que vai contracenar com a veterana Susana Vieira.

O folhetim tem previsão de estreia para maio, depois de Travessia, e já está sendo gravado no Mato Grosso do Sul, onde a história será ambientada. Apesar da estreia em horário nobre, a caminhada de Valéria foi árdua. A atriz tem 35 anos de carreira e começou na vida artística cantando e fazendo performances em clubes de Santo Angelo, no Rio Grande do Sul.

Atualmente, divide o tempo entre a gravação da novela, apresentações como DJ e escritora. “A Luana é uma mulher trans assim como eu, e as nossas histórias se cruzam, porque na vida elas costumam ser repetitivas, mesmo. Ela é alegre e chamativa, tem os mesmos anseios que todas nós, pessoas trans, que é ser invisível perante a sociedade,” pontua.

Valéria celebra a oportunidade na carreira e lembra que, em um país como o Brasil, que ocupa o topo da lista com o maior número de homicídios de pessoas travestis e transexuais –segundo dados divulgados pela Articulação Nacional de Travestis e Transexuais —, considera um privilégio trabalhar com arte.

“Sou infinitamente privilegiada por estar viva aos 40 anos. A expectativa de vida de uma mulher trans é de 35 e de uma trans preta é de 25. Então, estou em uma situação de privilégio infinita e principalmente por trabalhar com arte há muito tempo. Eu nunca precisei recorrer a outros artifícios –em especial, as meninas trans acabam recorrendo à prostituição.”

Confira, abaixo, trechos da entrevista a Marie Claire.

Valéria Barcellos comemora papel em 'Terra Vermelha' — Foto: Divulgação

Valéria Barcellos comemora papel em ‘Terra Vermelha’ — Foto: Divulgação

MARIE CLAIRE Como foi receber a notícia de que faria parte do elenco de Terra e Paixão?

VALÉRIA BARCELLOS Foi uma surpresa infinda. Eu já estava fazendo alguns testes na Globo e não esperava que isso fosse acontecer tão logo. Talvez tenha sido isso, de relaxar e não ficar na expectativa de que iria acontecer. Quando eu recebi a notícia, não consegui ouvir mais nada. Sabe quando a pessoa está falando e você não escuta? Começou a passar um filme na minha cabeça, foi muito surpreendente. Foi uma notícia que me tirou o sono de tanta felicidade.

MC Você considera esse o seu melhor momento?

VB Eu sempre considero o meu melhor momento o dia de hoje por estar viva. Viver é muito urgente. Eu não gosto de planejar e ficar pensando no que eu vou fazer daqui a algum tempo, porque as coisas precisam acontecer no decorrer do dia. Eu passei por algumas coisinhas… Tive câncer em 2020, sofri agressões… Aprendi nesses momentos da vida que o dia de hoje é o mais importante.

MC Você pode adiantar detalhes sobre a sua personagem Luana Shine?

VB Essa é a pergunta que não quer calar, tem coisas que nem eu sei. Mas a gente tem uma história muito parecida. A Luana é uma mulher trans como eu, e as nossas histórias se cruzam, porque na vida elas costumam ser repetitivas, mesmo. Luana é alegre e chamativa, tem os mesmos anseios de todas nós, pessoas trans, que é ser invisível perante a sociedade. Não sei mais detalhes e não posso falar muita coisa porque o Walcyr [Carrasco] é muito reservado e surpreendente. Estou ansiosa com esse trabalho.

MC O Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Você se considera privilegiada por ter conseguido essa oportunidade?

VB Infinitamente. Aliás, eu sou infinitamente privilegiada por estar viva aos 40 anos. A expectativa de vida de uma mulher trans é de 35, e a de uma trans preta é de 25. Então, estou em uma situação de privilégio infinito. Principalmente por trabalhar com arte há muito tempo. Eu nunca precisei a recorrer a outros artifícios –em especial, as meninas trans acabam recorrendo à prostituição. E eu sou esse número pequenininho que é uma exceção.

MC Trabalhar em uma novela da Globo vai te trazer muito mais visibilidade que você já tem. Por ser uma mulher trans e negra, você tem medo?

VB Eu tenho medo, sim. Quando somos colocadas em lugar de destaque, ficamos na primeira linha, isso significa que seremos as primeiras a ser atacadas. Eu tenho muito medo, mas sou travesti e vivo com medo. Ele dorme, acorda e come comigo. Ao mesmo tempo, não tenho direito de sucumbir a esse medo por ser exceção e ser uma voz que é ouvida. Eu preciso, de certa forma, estar com força o suficiente para que outras como eu se sintam minimamente fortes e para que as pessoas entendam que é possível um outro mundo.

MC Apesar de a cultura abrir espaço para mulheres trans e negras, não é comum que elas ocupem lugares de protagonistas ou mesmo cargos de confiança. Você defende um sistema de cotas para que mais oportunidades sejam dadas a essas pessoas?

VB Uma pergunta que eu sempre tenho que responder é por que as pessoas cis não podem interpretar pessoas trans. Eu sempre digo: ‘Corra atrás, querida! E faça com que pessoas trans façam papéis pessoas cis’. Vamos ter uma equidade de números aí e, talvez, daqui a algum tempo, tudo possa ficar puro e simplesmente no campo da arte. A gente não tem igualdade de números atualmente. E se eu for chamada para representar uma mulher cis, seria uma em um bilhão. Tão raro. Até que esse número fique igual, esse sistema de cotas vai ter que ser pensado. É muito importante que isso aconteça.

Valéria Barcellos sobre ser uma atriz trans: 'Sou infinitamente privilegiada por estar viva aos quarenta anos' — Foto: Divulgação

Valéria Barcellos sobre ser uma atriz trans: ‘Sou infinitamente privilegiada por estar viva aos quarenta anos’ — Foto: Divulgação

MC Há dois anos, você descobriu um câncer. Como foi essa volta por cima?

VB Eu ainda estou no deglutir dessa notícia. A minha remissão acaba em 2025, mas eu já me declarei autocurada e é isso. A primeira pergunta que fiz foi: ‘Por que eu?’. E depois, em uma epifania, veio a voz da minha mãe dizendo: ‘Por que não, alecrim dourado?’. Eu não estou imune a nada. Foi traumático, e eu senti muito por não conseguir trabalhar cantando. Muitas vezes, eu saía da quimioterapia e ia cantar. E tinha que pedir para o menino que toca violão comigo para ele segurar as pontas para eu ir ao banheiro vomitar. Isso fez com que eu ficasse mais forte. Essa volta por cima veio quando eu cheguei a pensar que talvez não resistisse. Eu não tenho medo da morte, eu tenho preguiça. Tenho que cantar com a Adele, ainda tenho que fazer muita coisa.

MC Quais são seus planos daqui para a frente?

VB Eu não sei nem te dizer. Sei que a novela vai ser um divisor de águas e que muitas portas vão se abrir. Vou enfrentar um tanto de coisas legais e não legais. Espero fazer muito pelas outras mulheres também, tenho isso na cabeça. Espero poder trabalhar muito. Viver da minha arte um pouco mais leve. Que eu consiga me estabelecer como uma artista real.

Valéria Barcellos está escalada para a nova novela de Walcyr Carrasc — Foto: Divulgação

Valéria Barcellos está escalada para a nova novela de Walcyr Carrasc — Foto: Divulgação

 

 

 

 

 

 

Revista Marie Claire


Deixe um comentário ou dica do que gostaria que pudéssemos trazer de novidade para vocês. E se curte nosso CANAL faça uma doação de qualquer valor para que possamos continuar com esse trabalho.

PIX: (11) 98321-7790
PayPal: [email protected]

TODO APOIO É IMPORTANTE.

Compartilhar.

Sobre o Autor

DEIXE UM COMENTÁRIO

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.