Estigma enfrentado por transexuais ocasiona adoecimento mental e exclusão social

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Estudo aponta que experiências de perseguição, assédio, violência, discriminação e rejeição deixam população travesti e transexual mais vulnerável ao autoextermínio.

Por Alex Bessas

No país que se mantém, desde 2008, na liderança entre os que mais matam travestis e transexuais no mundo – segundo a organização não governamental Trangender Europe (TGEU), que monitora estatísticas de 71 nações –, Michele Almeida entrou para as estatísticas. Na última sexta-feira, 29, ela foi encontrada sem vida às margens da avenida Tereza Cristina, no bairro Vila São Paulo, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. E, não bastasse a dor da perda e a brutalidade da morte, a sua família ainda precisou passar por constrangimentos que evidenciam a resistência da sociedade em reconhecer identidades que escapam ao padrão cisgênero. De acordo com parentes, o Instituto Médico-Legal (IML), mesmo após ter sido feito o reconhecimento da vítima, demorou a autorizar a liberação do corpo e acrescentou camadas de burocracia ao processo por se tratar de “um corpo de homem e com documentos de mulher”.

Longe de ser uma exceção, a história de Michele revela uma realidade de constante luta contra o apagamento, simbólico e concreto, de identidades travestis e transexuais. Entre casos de homicídios tentados e consumados em Minas Gerais entre 2016 e 2018 envolvendo essa população, o nome social foi ignorado em 62% e a identidade de gênero em 48% das vítimas, conforme dados do Registro de Homicídios Envolvendo LGBTs no Estado de Minas Gerais, elaborado pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH) em parceria com o Ministério Público de Minas Gerais, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos (CAODH). Portanto, a busca por reconhecimento, na maioria das vezes, precisou ser feita mesmo depois da morte.

Essa persistente invisibilização deixa cicatrizes. “O não reconhecimento das identidades travestis e trans e o estigma social que esse grupo recebe ocasionam adoecimento psíquico, marginalização e exclusão social”, examina a psicóloga clínica e social Dalcira Ferrão. “De fato, o adoecimento é decorrente da transfobia sociocultural, da ausência de políticas públicas emancipatórias e das inúmeras violências em relação a essa população”, conclui.

Autoextermínio. As observações de Dalcira, que é conselheira federal de psicologia, encontram respaldo em dados apontados por recentes estudos que se debruçaram sobre a experiência desse grupo de pessoas. São pesquisas que permitem verificar que travestis e transexuais estão, atualmente, mais vulneráveis ao autoextermínio. A organização não governamental norte-americana National Gay and Lesbian Task Force, em consonância com um levantamento do Instituto Williams, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, publicada em 2014, assinala que 41% das pessoas trans dos Estados Unidos já tentaram suicídio em algum momento. Considerando a população em geral, esse índice era de 4,6% à época da publicação. Entre os cisgêneros, a taxa caía para 1,2%.

Os dados são ainda mais alarmantes quando alguns fatores demográficos são levados em conta: “45% das tentativas de suicídio acontecem entre jovens de 18 a 24 anos; 54%, entre pessoas que se declaram multirraciais. Ainda de acordo com o estudo, entre as principais motivações para tentativa de suicídio, além da condição mental, estão as experiências de perseguição, assédio, violência, discriminação e rejeição, fatores que, juntos, levam o indivíduo a um estado de maior vulnerabilidade”, detalha o dossiê “A Geografia dos Corpos das pessoas Trans”, divulgado em 2017 pela Rede Trans Brasil.

Falta acesso. Agrava o já problemático cenário o fato de, no Brasil, o acesso à saúde integral para travestis e transexuais ainda ser um desafio, mesmo no Sistema Único de Saúde (SUS), admite Dalcira. “A rede pública de saúde mental conta com serviços destinados à população em geral, mas que nem sempre conta com profissionais qualificados para o atendimento a essa população”, avalia, lembrando que o não acolhimento do uso do nome social permanece sendo um entrave para a garantia da assistência a essas pessoas, apesar de já existir legislação sobre o tema desde 2009.

Como resposta às barreiras encontradas nos programas de suporte à população em geral, foram instaladas unidades de saúde integral específicas para o atendimento dessa população. Com esse propósito, funcionam em Belo Horizonte o Ambulatório Trans Anyky Lima, situado no Hospital Eduardo de Menezes, e o Ambulatório Trans para Adolescentes João Paulo II. “Mas (essas instituições) ainda não conseguem contemplar toda a demanda de atendimento da cidade e até mesmo do Estado”, sublinha a psicóloga.

Pandemia afetou suporte a travestis e transexuais 

Agora, a pandemia da Covid-19, que sufoca a rede pública e privada de saúde, fragiliza também a assistência a travestis e transexuais, como avalia Kenia Simpson, atual presidente da Antra. “Com o acirramento dessa crise sanitária, ficou ainda mais difícil para nós ter atendimento”, pontua, lembrando que esta já era uma realidade para a comunidade que ela representa.

“A gente já não tinha capilaridade em nível nacional de hospitais prontos para o acompanhamento de terapias hormonais e para a realização de cirurgias de redesignação sexual. Para se ter uma ideia, em alguns locais, chegamos a enfrentar filas que duram até 20 anos para fazer esses procedimentos. Então, a pandemia chega e pega todo mundo desprevenido, fazendo sofrer ainda mais quem já estava vulnerável. Prova disso, algumas pesquisas que recebemos (na Antra) apontam que houve redução de 70% das intervenções cirúrgicas e hormonais. Se já era difícil antes, agora ficou ainda mais complicado”, lamenta Kenia.

Além disso, a lógica cisnormativa permanece funcionando como uma barreira para a busca de suporte médico. Kaio Lemos, coordenador nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat), situa que o atendimento ginecológico costuma ser um problema recorrente para homens trans e pessoas transmasculinas.

“Esses consultórios foram consagrados como espaços dedicados apenas às mulheres, e, por isso, muitos de nós não se sentem seguros ou confortáveis nesses ambientes”, descreve. A dificuldade se torna ainda maior se a pessoa tem o nome retificado – “neste caso, fica difícil conseguir agendar uma primeira avaliação”. Situação semelhante ocorre no caso de gestantes. “Os dispositivos que atendem pessoas grávidas, chamados de ‘maternidades’, portanto delimitando esse espaço à figura da mãe, são normalmente excludentes, sendo muito difícil para nós atravessar todo esse processo”, avalia.

Despatologização. Kaio Lemos também critica o discurso cisnormativo que insiste em categorizar a transmasculinidade e transfeminilidade como algo patológico. “Normalmente, a leitura que prevalece é fundamentada na ideia do sofrimento disfórico. Nos ambulatórios que estão em funcionamento, encontramos vários exemplos desse discurso, o que faz que o cuidado oferecido esteja longe do ideal. Na verdade, esses lugares tornam-se laboratórios de violência”, assevera, sinalizando que muitas vezes travestis e pessoas trans se sentem induzidas a ser um “protótipo desse sistema que sempre questiona o que somos e dita como devemos ser para sermos considerados ‘homens de verdade’”, continua.

Em sintonia com as ponderações do representante da Ibrat, a psicóloga Dalcira Ferrão celebra a retirada das travestilidades e transexualidade dos manuais diagnósticos psiquiátricos. “É um marco, pois rompe com uma das principais lógicas de ordenamento e controle social que é o gênero. Cai a lógica do mito do transexual verdadeiro, ou seja, aquela pessoa que deveria seguir uma série de critérios para ser considerada ‘verdadeiramente’ transexual ou travesti e que deveria ser diagnosticada”, avalia.

“O Conselho Federal de Psicologia possui a Resolução CFP 01/2018, que garante o atendimento qualificado para pessoas travestis e trans, reconhecendo sua identidade, o nome social e ressaltando nossa importância no enfrentamento da transfobia. Nosso trabalho se pauta pela autodeterminação, já que não somos nós, profissionais da psicologia ou de qualquer outra área, que devemos dizer quem é ou não travesti ou trans. Vidas e corpos travestis e trans não são errados e não devem ser corrigidos”, acrescenta a especialista.

Longa espera faz que pessoas trans optem por procedimentos ‘caseiros’

Respondendo à demanda pelo acesso a intervenções médicas, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou, em janeiro do ano passado, uma resolução que reduziu de 21 para 18 anos a idade mínima para que indivíduos transgênero possam passar pelo procedimento de redesignação sexual. A norma também passou a permitir a hormonoterapia aos 16 anos, ante 18, e criou regras para o uso de medicamentos para bloqueio hormonal da puberdade. À época, a notícia foi celebrada por travestis e transexuais. Contudo, Keila Simpson adverte que as conquistas ficaram apenas na letra fria da burocracia.

“A verdade é que o acesso a esse cuidado é muito dificultado, com filas de espera intermináveis. Um caminho para superar esse obstáculo seria, por exemplo, que a terapia hormonal fosse oferecida na atenção básica”, sugere a presidente da Antra. “Enquanto isso, muitas de nós acabam optando por realizar esses tratamentos de forma clandestina e indiscriminada”, lamenta a presidente da Antra. O cenário desenhado por ela não é muito diferente daquele vivenciado pelos homens trans e pelas pessoas transmasculinas.

“Uma parcela dessa população acaba optando por realizar cirurgias caseiras, como o ‘pump’ ou ‘pumping’, quando a genitália é modificada por meio do uso de um equipamento. Sendo feito em casa, os riscos desse tipo de intervenção aumentam”, assinala Kaio Lemos. Vale lembrar, informações sobre o procedimento constavam em uma cartilha disponibilizada pelo Ministério da Saúde em 2018, mas que foi retirada do ar em 2019. Depois, o material voltou a ser publicado, mas sem que ilustrações da intervenção constassem no documento.

Lida com o próprio corpo não é sinônimo de sofrimento

Ainda que evidentemente seja uma pauta importante, discutir o acesso aos tratamentos hormonais e cirúrgicos não significa reduzir o processo transexualizador a uma experiência médica. Ocorre que, diferentemente do que faz crer o senso comum e do imperativo da medicina em tratar travestis e transexuais sempre da perspectiva da disforia de gênero, como critica Kaio Lemos, a jornada das pessoas travestis e transexuais não é uniforme e linear, já que nem todas as vivências se manifestam da mesma forma e com as mesmas características.

“Algumas pessoas sentem um grande desconforto corporal, com sua imagem e características que podem lhes identificar do gênero no qual não se reconhece, outras não; algumas não demonstram desejo de iniciar processo de hormonioterapia; outras ainda podem ou não apresentarem o desejo de procedimentos cirúrgicos”, argumenta Dalcira Ferrão. “Não devemos fazer uma gradação de critérios e itens para identificar quem seja o ‘verdadeiro trans’ ou a ‘verdadeira trans’. Cada pessoa deve ser considerada em sua singularidade para o andamento de seu processo transexualizador”, complementa.

Tratamentos ‘caseiros’ trazem riscos

Riscos. A endocrinologista Beatriz Santana Soares Rocha, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia – Regional Minas Gerais (SBEM-MG), indica que, quando feita por conta própria, a hormonioterapia traz riscos a curto, médio e longo prazo. Uma das implicações diz respeito à fertilidade, que é impactada pelas terapias hormonais.

Para elas. Beatriz informa que, nas mulheres trans e travestis, os principais problemas relacionados ao uso de antiandrogênicos são a trombose venosa e o tromboembolismo pulmonar, decorrentes principalmente da aplicação de doses inadequadas de estrogênio. Um outro desdobramento, relacionado a essas complicações iniciais, é o aumento do risco cardiovascular, além da alteração da prolactina e dos níveis de colesterol, em especial os triglicérides. A endocrinologista ainda lembra que a hormonização por conta própria é mais disseminada entre elas, que recorrem a anticoncepcionais.

Para eles. Já no homem trans e transmasculino que faz uso da testosterona, os efeitos adversos mais comuns são o espessamento do sangue, alteração do ponto de vista metabólico, principalmente da glicose e do colesterol. Há também o aumento de ocorrência de doença arterial coronariana, quando artérias são obstruídas. Pode haver, ainda, o aumento do processo de aterosclerose, quando ocorre o acúmulo de placas de gordura, cálcio e outras substâncias nas artérias. Um outro problema é o sangramento ginecológico.

Minientrevista com Dalcira Ferrão, psicóloga clínica social e conselheira federal de psicologia

1. Só em 2019 a transexualidade deixou de ser apontada como um transtorno psiquiátrico pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Qual a importância desse acontecimento da perspectiva da atenção à saúde? 

Esse acontecimento é uma reivindicação de anos de pessoas travestis e transexuais, já que considerar as vivências de gênero trans enquanto transtorno ou patologia psiquiátrica, além de desumanizar esses corpos, traz implicações práticas de violações de direitos em suas vidas, como direito à autonomia corpo, não acesso à saúde, dentre outros. Quando entendemos o conceito de saúde conforme a determinação da OMS, como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a mera ausência de doença ou enfermidade”, entendemos a importância da despatologização dessas identidades. Fica evidenciado que o adoecimento não se dá pela condição em si, mas por esse não reconhecimento e valorização de tais expressões humanas.

2. Por outro lado, no primeiro ano em que poderiam participar da parada do orgulho LGBTQ+ celebrando a despatologização de sua identidade, a pandemia inviabilizou qualquer celebração presencial. Para além desse efeito simbólico, quais outros efeitos a Covid-19 e as ações necessárias para a contenção da proliferação da doença têm tido na saúde mental das pessoas trans?

A pandemia acabou gerando a diminuição da renda ou até mesmo a ausência dela, o que fez com que muitas dessas pessoas, que antes tinham sua independência financeira, necessitassem retornar aos seios familiares, nem sempre acolhedores. Dessa forma, torna-se um desafio duplo para pessoas travestis e trans, conviver com o medo da pandemia e com posturas familiares preconceituosas e em alguns casos, até violentas. Isso devido à não aceitação de suas vivências por parte de suas famílias. A Covid-19 tem impactado diretamente na saúde mental da população travesti e trans na medida em que tem proporcionado o isolamento dentro do isolamento, ou seja, grande parte das pessoas estão reclusas com suas famílias e buscando isolar-se das mesmas, além de estarem isoladas da sociedade por conta da pandemia. O escape que se tinha anteriormente de ter a convivência externa, com amigos, neste momento não é possível.

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