ECA teve seu primeiro filme LGBT em plena ditadura

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Curta-metragem que atiçou a censura é um precursor da temática no cinema brasileiro.

Por Diego Andrade

O ano de 1968 marcou a história do Brasil com a decretação do quinto Ato Institucional da Ditadura Militar, o AI-5, considerado um dos mais repressivos em 21 anos de regime. Naquele mesmo ano, a ECA (Escola de Comunicações e Artes da USP) assistiu à primeira produção audiovisual realizada por alunos do curso de Cinema, também um dos primeiros filmes brasileiros a tratar da questão LGBT. Um fato hoje pouco conhecido por seus alunos e que marcava a história da escola por ser considerado transgressor para a época.

Em seu primeiro ano de graduação, quando estreava o curso de Cinema na USP (hoje chamado de Audiovisual), o cineasta Djalma Limongi Batista lançava o curta-metragem “Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora”. Inspirado na contracultura, o filme narra a história de Antônio (Eduardo Nogueira) e Isaías (Carlos Alberto), dois jovens universitários que se conhecem pelas ruas de São Paulo e mantém intensa relação. Com locações por lugares como o Viaduto do Chá e a Galeria Metrópole, o curta também teve cenas gravadas na Cidade Universitária.

Trata-se do primeiro registro encontrado no acervo da faculdade de uma produção realizada por alunos, e pode ser considerado um marco na história da ECA por ser também um dos primeiros filmes brasileiros a retratar a homossexualidade de forma séria, com personagens gays como protagonistas, sem estigmatização.

O cineasta Lufe Steffen, professor do curso “LGBTs no Cinema Brasileiro – Panorama Histórico Séculos XX e XXI”, ministrado no SESC, explica que, antes do curta de Djalma, o único filme brasileiro do gênero era o longa “O Menino e o Vento” (1967), do diretor Carlos Hugo Christensen, argentino que fez carreira no Brasil. “O do Djalma acredito que seja o primeiro curta com temática LGBT. Mas os dois tratam a questão de uma maneira mais séria, de uma maneira densa, mais poética. É a primeira vez que você vê personagens gays assim, que tem uma relação, que não ia nem para o lado cômico ou escrachado, nem era uma coisa marginalizada.”

Premiado e censurado

Como conta o cineasta em sua biografia (Imprensa Oficial, 2005), no mesmo ano em que produziu o filme, o diretor o inscreveu no Festival de Curtas do Jornal do Brasil, na época o periódico mais importante do país. O filme de Djalma venceu em todas as categorias em que concorreu: melhor filme, direção, montagem, roteiro e ator (para Eduardo Nogueira).

Isso não impediu que o cineasta amazonense fosse barrado na ECA quando tentou exibir seu curta aos alunos. Ele conta que o sucesso da produção chamou imediatamente a atenção da escola, e que alguns professores quiseram proibi-lo. “Fui convocado para uma reunião que parecia uma inquisição. O problema não era somente com a temática, mas também porque, naquela época, a ECA tinha intenção de formar cineastas voltados ao documentário.”

Foi graças a sua insistência e à palavra final de Paulo Emílio Sales Gomes – então professor da  ECA – que Djalma obteve a autorização. Porém, em 1970, com o auge do AI-5, tanto o “Um Clássico…”, quanto seus outros dois curtas produzidos enquanto aluno (“O Mito da Competição do Sul” e “Hang-five”) foram banidos pela reitoria da USP, sob a justificativa de que eram filmes “pornográficos e subversivos”. Todos tratavam da temática LGBT, e “O Mito”, inclusive, foi gravado na Cidade Universitária. Os filmes de Djalma só ressurgiram nos anos 80, e hoje estão sob o cuidado da Cinemateca Brasileira, com uma cópia de “Um Clássico…” disponível na biblioteca da ECA.

Precursor

A história do curta de Djalma chamou a atenção de João Pedro Durigan, aluno do quarto ano de Audiovisual na ECA. Ele o assistiu pela primeira vez na aula do professor Lufe Steffen, no SESC, e lamenta nunca ter ouvido sobre o filme durante a graduação. “No curso, existem sete disciplinas sobre História do Audiovisual, mas a produção universitária antiga geralmente não entra em pauta. Acho muito simbólico que a primeira produção audiovisual da ECA tenha sido um filme transgressor que foi censurado. É importante para entender as maneiras como a censura atua, especialmente num ambiente tido como politizado.”

Contudo, ele não enxerga como “má intenção” por parte dos professores a omissão dessa história nas salas de aula, mas acha decepcionante nunca tê-la ouvido por ser um marco histórico. “É o primeiro filme da ECA, então poderia ser citado mesmo que apenas como uma curiosidade. Fico um pouco triste pensando que esse talvez seja o destino das nossas produções universitárias atuais.”

Para Steffen, a importância de falar de Djalma e suas produções se dá pelo fato de o cineasta ter sido pioneiro na temática LGBT no cinema brasileiro. “O cinema brasileiro LGBT já é um assunto digno de estudo. Então, como qualquer assunto acadêmico, é importante saber como tudo começou. Por exemplo, se a gente estivesse falando do Cinema Novo, as pessoas sabem quem é Glauber, que foi o grande pioneiro. No caso do cinema brasileiro LGBT, é a mesma coisa. O Djalma é o pioneiro, ele tem que ser conhecido.”

“Um Clássico…” foi um dos precursores do cinema LGBT no Brasil. Foto: Reprodução

Em plena repressão

Decretado em 13 de dezembro de 1968 durante o governo Costa e Silva, o Ato Institucional nº 5 (AI-5) consolidou o período mais repressivo da ditadura militar instalada em 1964 no Brasil.

O decreto vigorou até 1978 e, entre outras determinações, concedia ao Presidente da República o poder de suspender os direitos políticos de qualquer cidadão, proibia manifestações populares de caráter político e impunha a censura prévia a jornais, revistas e produções culturais.
Em sua tese de doutorado pelo Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI-USP), o pesquisador Renan Quinalha estuda como o regime militar, marcado pela “defesa da moral e dos bons costumes”, estruturou um projeto repressivo em relação às questões de sexualidade e de gênero.

Em sua pesquisa, Quinalha analisou acervos documentais produzidos pelos órgãos de repressão, muitos deles relacionados à censura de produções artísticas e culturais, como livros, peças, filmes e novelas.

Ele conta que muitas produções analisadas na tese, ao contrário do que afirmavam as justificativas da repressão oficial, não continham temática estritamente política ou apologia a uma revolução comunista. “Eram trabalhos que estavam representando amor entre duas mulheres, representando nu masculino, representando dois homens fazendo sexo. Temas de comportamento de sexualidade e que receberam grande atenção da Ditadura, uma repressão bastante grande.”

Para o pesquisador, a visão conservadora sobre sexualidade estava atrelada ao projeto de afirmação da nacionalidade, que visava combater qualquer tipo de pretensa subversão.“É essa ideia de preservar a instituição da família e seus valores religiosos para poder ter uma sociedade sadia, espelhada a partir dessa família tradicional. Isso é um pensamento conservador que na Ditadura vira uma política de Estado, uma política sexual específica que se manifesta muito na censura moral.”

http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2018/04/eca-teve-seu-primeiro-filme-lgbt-em-plena-ditadura/

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