Anúncio de série sobre Marielle gera discussão sobre racismo no cinema

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“É revoltante mais uma vez ver a branquitude disfarçar de boas intenções a apropriação da imagem de uma mulher negra lésbica, favelada, mãe, filha, irmã e esposa”

Por Alma Preta

Após anúncio de uma série produzida pela Rede Globo sobre a história de Marielle Franco sem pessoas negras na direção do projeto, diversos profissionais negros se manifestaram através de nota de repúdio. A nota foi enviada ao Alma Preta e reproduzida abaixo.

Nota de repúdio:

Na sexta-feira, 6 de março de 2020, a Rede Globo e a Globoplay anunciaram uma série ficcional baseada na vida de Marielle Franco, cujo assassinato em 2018 continua sem respostas. Acontece que o projeto anunciado é encabeçado por três pessoas brancas. A roteirista Antonia Pellegrino (“Sexo e as Negas”, “Bruna Surfistinhas” e “Tim Maia”), George Moura (“Onde Nascem os Fortes”, “Amores Roubados” e “O Canto da Sereia”) e José Padilha.

É revoltante. No entanto, numa sociedade capitalista, não surpreende que a história de uma mulher negra seja contada a partir do ponto de vista de três pessoas brancas. A única surpresa é o fato de terem demorado tanto para anunciar o projeto, visto a sanha que têm de se apropriar dessa história há tanto tempo.

Mas o desastre fica maior a cada detalhe. O diretor escolhido para comandar a série é o homem que deu e dá ferramentas simbólicas para a construção do fascismo e genocídio da juventude negra no país. É uma violência extrema envolver numa série sobre Marielle o autor de filmes que retrataram de forma heroica a polícia mais violenta do país. Para se ter uma ideia, após “Tropa de Elite”, as inscrições no Bope aumentaram vertiginosamente. O retrato ali inspirou e inspira ações violentas em todo o país. Não à toa, a música tema da tropa no filme apareceu em dezenas de vídeos de apoio ao presidente em exercício. É o filme que mais exaltou o tema “bandido bom é bandido morto”, simplificando a discussão da violência urbana a uma questão de polícia.

Além disso, ficcionalizar em torno de um crime que ainda está sendo investigado também é uma violência e uma naturalização do crime violento e dos 13 tiros disparados contra o carro de Marielle, que vitimaram ela e o motorista Anderson Gomes.

Depois disso, Padilha ainda dirigiu a série “O Mecanismo”, cujas falsificações históricas só fizeram recrudescer o discurso fascista que resultou no governo mais autoritário e violento das últimas décadas no Brasil.

É revoltante mais uma vez ver a branquitude disfarçar de boas intenções a apropriação da imagem de uma mulher negra lésbica, favelada, mãe, filha, irmã e esposa. Para defender sua propriedade de contar a história de Marielle, Antonia Pellegrino usou como argumento: “eu a conhecia muito bem”, “eu ajudei na sua primeira campanha”, “eu segurei o seu caixão”.

Mas a mesma pessoa que diz ter se inspirado em Marielle e diz ter respeito pelo feminismo negro, se lança como arauto para contar essa história aliada aos seus pares, masculinos e brancos. Tudo isso é extremamente violento. É um desrespeito a tudo que Marielle defendia.

Se qualquer uma dessas pessoas tivesse entendido de fato a luta de Marielle, saberia o quão violento é fazer esse projeto encabeçado apenas por pessoas que não refletem sua imagem e semelhança. Existe um valor simbólico e financeiro em contar essa história. Um valor que vai ficar na mão daqueles que sempre dominaram o audiovisual no Brasil.

Ter em algum momento convivido ou lutado ao lado de Marielle não tira o peso da decisão de se apropriar da história dela dessa forma.

Padilha disse em entrevista ao “O Globo” que “se dedicou por muito tempo a histórias de violência urbana do Rio. Essa é uma que precisa ser contada”. A história de Marielle é muito mais do que apenas a violência institucional. Ela é muito mais do que uma vítima da violência urbana que tentam fazer parecer. Seu assassinato é o reflexo da necropolítica que ela denunciava.

A história de Marielle é também a história das tecnologias afetivas, pois Marielle sempre falou sobre afeto, empatia, mulheres lutando juntas, jovens negras movendo estruturas. A branquitude quer se apropriar e narrar essa história sem ao menos entender sobre o que ela é. Tudo isso é desesperador demais.

Às mulheres e homens pretos e lésbicas foi negado o direito de contar essa história. Pois ainda que o racismo estrutural e institucional tente nos paralisar, homens e mulheres negros e negras se tornaram grandes realizadores, comandando produções e recebendo reconhecimento aqui e fora o Brasil. Por isso, é ainda mais perverso saber que essa história só será contata se for produzida por essas pessoas, pois o racismo produziu mecanismo para distanciar pessoas negras do direito de contar a própria história.

Quem trabalha no audiovisual conhece bem as estratégias perversas da branquitude que domina esse meio e entende o código por trás de afirmações “bem intencionadas” sobre transformar a série numa “escola”. Isso significa que as decisões finais serão todas tomadas por brancos e que os profissionais não-brancos da equipe terão no máximo o direito de brigar e adoecer tentando deixar a narrativa menos racista, sendo subjugados pelo tokenismo.

Marielle, em sua última fala pública, contou a respeito da prefeitura do Rio: “primeiro eles saem chutando a porta, depois eles pedem desculpas e por último oferecem um microcrédito, que não repara nada”. Esse é o modus operandi da branquitude. Se apropriar como se tudo a ela pertencesse: nosso corpos, nossa subjetividade, nossa história. É um desastre, é violento e racista.

Assinam a nota:

1 – Ana Julia Travia – Roteirista e Diretora.

2 – Maíra Oliveira – Roteirista e Dramaturga.

3 – Mariani Ferreira – Roteirista.

4 – Renata Martins – Roteirista e Diretora.

5 – Myrza Muniz – Roteirista.

6 – Carol Rodrigues – Roteirista e Diretora.

7 – Jeferson da Silva Brum – Produtor e Distribuidor.

8 – Gautier Lee – Roteirista e Diretora.

9 – Ulisses da Motta Costa – Diretor.

10 – Luiz Santana – Roteirista.

11- Juliana Balhego – Realizadora Audiovisual.

12 – Phelipe Caetano – Roteirista.

13 – Adriana Silva – Produtora e Roteirista.

14 – Lorena Montenegro – Roteirista e Crítica de Cinema.

15 – Maitê Freitas – Jornalista.

16 – Viviane Pistache – Roteirista, Doutoranda e Crítica.

17 – Mariana Luiza – Roteirista e Diretora.

18 – Thaise de Oliveira Machado – Diretora de Arte

19 – Daniel Ramos – Antropólogo.

20 – Bruno dos Anjos Soeiro de Souza – Diretor de Fotografia.

21 – Paulo Souza – Atriz.

22 – Laís Werneck Oliveira – Produtora.

23 – Manuela da Fonseca Miranda – Atriz.

24 – Frederico Rosa da Paz – Produtor.

25 – Daniela Israel – Produtora e Diretora.

26 – Cibele Amaral – Roteirista e Diretora.

27 – Gabriella Padilha Scott – Realizadora Audiovisual.

28 – Roberta Rangel – Atriz e Realizadora.

29 – Jessica Queiroz – Diretora e Montadora.

30 – Julia Tolentino – Realizadora Audiovisual.

31 – Maria Clara – Roteirista e Publicitária.

32 – Caroline Moreira – Empreendedora.

33 – Jonathan Raymundo – Produtor do Wakanda in Madureira.

34 – Carmen Faustino – Escritora e Produtora Cultural.

35 – Tabatha Sanches – Cantora e Professora.

36 – Kelly Adriano de Oliveira – Antropóloga, Educadora e Gestora Cultural.

37 – Eliana Alves Cruz – Escritora e Jornalista.

38 – Sabrina Fidalgo – Roteirista e Diretora.

39 – Luciana Damasceno – Atriz e Roteirista.

40 – Bianca Joy Porte – Atriz e Roteirista.

41 – Jorane Castro – Roteirista e Diretora.

42 – Marília Nogueira – Roteirista e Diretora.

43 – Sílvia Godinho – Diretora, Roteirista e Produtora.

44 – Erica Malunguinho – Deputada Estadual do PSOL.

45 – Rafaela Carmelo – Diretora e Roteirista.

46 – Érica Sarmet – Roteirista, Diretora e Pesquisadora.

47 – Jorge Washington – Ator fundador e membro do Colegiado gestor do Bando de Teatro Olodum.

48 – Gabriel Nascimento – Professor, Pesquisador e Escritor.

49 – Gabriela Ramos – Advogada e Pesquisadora.

50 – Pedro Borges – Jornalista e co-fundador do Alma Preta.

51 – Claudia Alves – Roteirista e Diretora.

52 – Estevão Ribeiro – Roteirista e Escritor, criador da tirinha Rê Tinta.

53 – Rafael Mike – Roteirista – Compositor, Cantor e Diretor Musical (Dream Team do Passinho).

54 – Thamyra Thamara de Araújo – Jornalista e Roteirista.

55 – Ana Pacheco – Roteirista.

56 – Thiago Bernardes – Músico e Educador.

57 – Éthel Oliveira – Cineasta e Cineclubista.

58 – Luiza Romão – Atriz e Slammer.

59 – Marina Luísa Silva – Pesquisadora e Roteirista.

60 – Eric Paiva – Roteirista.

61 – Bruna Fortes – Montadora.

62 – Ton Apolinário – Roteirista.

63 – Atilon Lima – Audiovisualista e Fotógrafo.

64 – Mariana Costa – Pesquisadora.

65- Monique Rocco – Diretora de Produção.

66 – Karoline Maia – Diretora.

67 – Ébano Gama – Publicitário.

68 – Nêga Lucas – Atriz, Diretora, Escritora.

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