A história esquecida das drag queens e kings do passado

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  • Matt Cain
  • Role, BBC Culture

Da série de TV RuPaul’s Drag Race até os shows ao vivo em teatros e cabarés, o universo drag nunca foi tão popular.

Se, por acaso, você tiver morado em uma caverna nos últimos 10 anos, fique sabendo que drag é a arte da personificação de gênero. Os artistas exageram e amplificam aspectos da feminilidade, ou da masculinidade, para fins de entretenimento.

O universo drag vem tomando o mundo de assalto, mudando nossa linguagem, nossas ideias de gênero e até a forma como vemos a nós mesmos.

Sou um grande admirador do mundo drag — tanto que esta foi a inspiração do meu último romance, Becoming Ted (“Tornando-se Ted”, em tradução livre).

É uma história contemporânea sobre um homem com 43 anos que é abandonado pelo marido.

Ele usa a oportunidade para sair em busca do seu sonho há muito tempo reprimido de se tornar uma drag queen — e, durante o processo, acaba descobrindo uma força interior que ele nem sabia que existia.

Para mim, o mundo drag pode ser de autodescoberta e autorrealização. O tema também foi o ponto central do meu primeiro projeto no teatro, ainda não foi anunciado, que irá estrear em Manchester, no Reino Unido, no mês de julho.

Mas fiquei surpreso ao descobrir que muito poucos romances, filmes e peças teatrais sobre o mundo drag estão previstos para estrear no próximo ano. Para usar o palavreado drag, a biblioteca pode estar aberta, mas não há muitos livros para ler.

Esta forma de arte possui uma história particularmente rica que não é tão conhecida quanto deveria ser — algo que chama muito a atenção, especialmente considerando as comemorações do Mês da História LGBT+, aqui no Reino Unido.

Apesar da onipresença do universo drag na cultura popular, sua representação na arte narrativa é pequena há anos. Exceto pelo filme e musical Todos Estão Falando sobre Jamie e pela série de TV Pose — que, convenhamos, é muito mais concentrada na experiência trans —, é preciso voltar aos filmes dos anos 1990 A Gaiola das Loucas e Priscilla, a Rainha do Deserto, além de Kinky Boots, de 2003 (e do musical baseado neste filme), para encontrar histórias de sucesso passadas no universo drag.

E, mesmo assim, o tema é predominantemente usado como pano de fundo engraçado para histórias sobre a experiência gay e seus conflitos com a cultura hétero, ou simplesmente como fundo de comédia.

Mas o universo drag pode ser muito mais do que isso. Seu poder de transformação apresenta aos escritores uma oportunidade única, tanto para a criação de enredos quanto para o desenvolvimento de personagens.

Priscilla, a Rainha do Deserto (1994)

Crédito, Alamy

Legenda da foto, Priscilla, a Rainha do Deserto (1994) é um dos mais famosos filmes sobre o universo drag

Intolerância e ‘esnobismo social’

Fanny e Stella — também conhecidas como Ernest Boulton e Frederick Park

Crédito, Alamy

Legenda da foto, Fanny e Stella — também conhecidas como Ernest Boulton e Frederick Park — foram drag queens do século 19; sua história e seu infame julgamento foram contados em um livro de não ficção em 2013

Por que poucos escritores se inspiram no universo drag?

Divina de Campo foi a segunda colocada na primeira temporada da série RuPaul’s Drag Race UK. Ela acredita que o mundo drag é vítima do esnobismo social.

Para ela, “como o mundo drag está enraizado na comédia, ele costuma ser tratado como o restante da comédia, ou seja, o trabalho não é considerado sério ou digno”.

“O mundo drag reúne todas as formas de arte — cantar, dançar, representar, vestir-se, criar, escrever, dirigir — mas, muitas vezes, é engraçado e acaba sendo visto como algo menor”, afirma de Campo.

O universo drag também pode ser subversivo — e pode particularmente questionar os estereótipos de gênero.

“O mundo drag pode funcionar em nível mais profundo, desafiando as expectativas, as construções sociais, as normas e identidades de gênero”, prossegue de Campo. “Este é o meu universo drag; é fazer e ser o que você quiser e não o que fomos condicionados a ser e fazer… Isso faz com que o mundo fique complicado demais para algumas pessoas analisarem e, por isso, elas o negam e ridicularizam.”

O potencial do universo drag de subverter e perturbar é o tema central do show glorioso e anárquico Sound of the Underground, atualmente em cartaz no Royal Court Theatre de Londres. O show é parte cabaré, parte manifesto político.

Seu autor, Travis Alabanza, reúne vários dos melhores artistas drag de Londres. Todos eles colocam o universo drag no centro do seu trabalho. Eles estão longe de serem caricaturas. E o show serve de lembrete de que o mundo drag sempre esteve muito associado à cultura gay, ou queer.

O historiador Jacob Bloomfield nasceu no Brooklyn (Nova York, Estados Unidos) e, atualmente, cursa pós-doutorado na Universidade de Constança, na Alemanha. Ele é um artista drag com o pseudônimo Cupcake e escreveu o livro Drag: A British History (“Drag: uma história britânica”, em tradução livre), a ser lançado em breve.

Bloomfield declarou à BBC que “da mesma forma que o gênero disco — que, como o drag, muitas vezes é associado a fãs e artistas gays — foi desprezado e até abertamente ridicularizado, também o mundo drag foi frequentemente ignorado. É a intolerância que está em jogo, aqui.”

Essa intolerância ajudou a excluir do registro histórico dominante toda uma subcultura queer. E existem histórias fascinantes da vida real que não foram esquecidas — e que certamente gerariam romances, filmes, peças e outras obras brilhantes.

Um exemplo é John Cooper, um inglês do século 18 que se vestia como seu alter-ego drag Princesa Serafina e frequentava tavernas londrinas conhecidas como os bares gays da época.

Cooper exibia-se pelas ruas com grau de abertura notável para uma época em que a homossexualidade era passível de pena de morte.

Ele é geralmente apontado como a primeira drag queen da história da Inglaterra ou, pelo menos, o primeiro homem para quem vestir-se como seu alter-ego feminino era parte fundamental da sua identidade.

Em 1880, houve um baile drag no Temperace Hall em Hulme (distrito de Manchester, na Inglaterra). O baile contou com a presença de 47 homens e a metade deles vestiu-se com roupas de mulher. Todos entravam no salão sussurrando a senha “irmã”.

O evento foi invadido pela polícia e todos os homens foram presos, processados e tiveram seus nomes publicados para vergonha pública na imprensa. Muitos deles ficaram arruinados.

Imagine o que seria contar esta história para o público nos dias de hoje — o grau de empatia que poderia surgir e o impacto emocional que ela poderia ocasionar.

Gladys Bentley

Crédito, Alamy

Legenda da foto, Gladys Bentley, de Nova York (EUA), foi um drag king pioneiro, importante para o movimento de Renascimento do Harlem nos anos 1920

Fenômeno mundial

Apesar da violenta perseguição, a cultura drag floresceu pelo mundo.

Em Berlim, na Alemanha, entre o final do século 19 e os anos 1930, inúmeros bailes de cross-dressing — chamados em alemão de Urningsballs ou Tuntenballs — ocorriam em diversos locais.

A estrela da época chamava-se Hansi Sturm. Sua apresentação como Miss Eldorado atingia o ápice quando ele atirava seus seios falsos para a plateia.

Nos Estados Unidos, a primeira pessoa conhecida por se descrever como “rainha do drag” foi William Dorsey Swann. Ele nasceu em Maryland e havia sido escravizado.

Nos anos 1880, Swann promoveu diversos bailes drag na capital americana, Washington. Ele era acompanhado pelo seu parceiro, Pierce Lafayette. Mas, depois de uma incursão policial em 1896, Swann foi condenado a 10 meses de prisão.

Foi nos primeiros dias desses bailes que começou a ser usada a palavra “drag”. A origem do termo é incerta. Ele pode ter sido inspirado pelas roupas usadas pelos homens que queriam exagerar na sua expressão de feminilidade.

Os vestidos eram tão pesados que precisavam ser literalmente arrastados (“dragged”, em inglês) pelo chão.

Uma história amplamente conhecida é a das drag queens inglesas Fanny e Stella, do século 19. Ela foi contada em um livro best-seller de não ficção do escritor Neil McKenna em 2013 e em um musical no teatro posteriormente.

Ernest Boulton e Frederick Park passaram anos vestindo-se como drag queens para representar e vender sexo nas ruas de Londres, até que, em 1870 (depois de uma noite intensa no Teatro Strand), eles foram presos e acusados de conspiração para cometer sodomia.

O julgamento despertou a indignação do público, embora Boulton e Park acabassem sendo considerados inocentes por falta de provas de que a sodomia tivesse realmente acontecido.

McKenna acredita que o julgamento chamou a atenção do público porque “havia todo tipo de ansiedade sobre a masculinidade, sobre o declínio, sobre o encolhimento do Império, sobre a afeminação e muitas coisas sobre a falta de submissão das mulheres, que não eram mais invisíveis. O mundo drag era visto como manifestação do comportamento sodomítico, de afeminação, de degeneração”.

Mas até esta história quase ficou enterrada como um rodapé histórico.

“Tive dificuldade para encontrar uma editora”, revela McKenna. “E, quando finalmente consegui que a [editora londrina]Faber a publicasse, certas frases precisaram ser excluídas do livro porque foram consideradas rudes demais e impróprias para publicação.”

Grupo drag Les Rouges et Noirs

Crédito, Alamy

Legenda da foto, Grupo drag Les Rouges et Noirs fez enorme sucesso no início do século 20; sua história é contada no filme Splinters (1929)

Drag queens e kings

Capa do livro Becoming Ted em inglês

Crédito, Headline Review

Legenda da foto, Livro Becoming Ted, de Matt Cain, conta a história de um homem que é abandonado pelo marido e sai em busca do seu sonho de se tornar uma drag queen

Se pouco se sabe sobre as drag queens do passado, imagine sobre os drag kings — mulheres que personificam homens.

Os drag kings foram excluídos quase totalmente da literatura, exceto pelos romances da escritora galesa Sarah Waters, especialmente o livro Toque de Veludo, que foi adaptado pela BBC em uma popular série de TV, em 2002.

Conversei com Mo B Dick, drag king e um dos criadores do site dragkinghistory.com. Ele afirma que as raízes da cultura drag king remontam aos anos 1660, quando se permitiu, pela primeira vez, que as mulheres representassem no teatro inglês.

Uma das primeiras mulheres dramaturgas foi Aphra Behn, que criou diversos personagens homens que deveriam ser interpretados por mulheres.

“Ela criou ‘personagens de bermudas’ especificamente por razões políticas”, explica Mo B Dick, “para que ela pudesse ser ouvida dessa forma, falando sobre política e costumes sociais. Era algo desconhecido para as mulheres!”

Uma mulher que se destacou na interpretação dos “personagens de bermudas” foi Mademoiselle de Maupin. Ela nasceu em Paris, na França, em 1673 e foi uma excelente lutadora de espada. Dona de forte temperamento, de Maupin ficou conhecida por seus romances apaixonados com homens e mulheres.

Sua vida dramática, que incluiu condenações por rapto e incêndio criminoso, chegou ao fim com apenas 33 anos.

Outra figura histórica foi Charlotte Cushman. Nascida em Boston, nos Estados Unidos, em 1816, ela se tornou uma das mais populares atrizes americanas, até se mudar para Roma, na Itália.

Lá, ela formou uma residência onde moravam apenas artistas mulheres. Seus documentos pessoais estão guardados na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos e revelam que ela só manteve relacionamentos românticos e sexuais com mulheres.

Mas foi apenas no final dos anos 1800 que a cultura drag king atingiu a forma que conhecemos hoje em dia.

Uma figura importante no movimento do Renascimento do Harlem, em Nova York (EUA), nos anos 1920 foi Gladys Bentley. Ela foi uma artista lésbica negra, vaidosa e conhecida por vestir um smoking branco e cartola para cantar músicas com letras indecentes em bares e clubes de jazz clandestinos.

Mo B Dick define a cultura drag king como “usurpadora do poder e privilégio masculino”. E acrescenta que é exatamente por isso que tantas pessoas, até hoje, acham que ela é perturbadora.

Ele defende que, atualmente, os drag kings estão muito longe da popularidade das drag queens.

“Homens que usam vestidos são engraçados, mulheres que usam terno ainda são consideradas uma ameaça”, segundo ele. “Por isso, acho que mulheres com roupas de homem são uma transgressão maior e deixam as pessoas mais desconfortáveis. Quero dizer, as pessoas que querem manter o patriarcado, a misoginia e o sexismo.”

Outra razão para que a história dos artistas drag não seja mais enaltecida — como ocorre com as figuras histórias nos campos da interpretação, literatura, arte ou da música — é o fato de que as raízes do universo drag estão fincadas na cultura da classe trabalhadora.

A figura da drag queen que conhecemos formou-se nas salas de música do Reino Unido e no teatro de revista, nos EUA.

Como indica Jacob Bloomfield, “o entretenimento da classe trabalhadora, muitas vezes, é ignorado por não ser artisticamente válido”.

Como exemplo, Bloomfield aborda no seu livro o que aconteceu em 1975, em Londres, quando houve uma tentativa de erguer uma placa em homenagem ao ator britânico Arthur Lucan, conhecido pela sua interpretação do papel feminino do ato teatral Old Mother Riley (“A velha mamãe Riley”, em tradução livre).

A proposta causou um debate feroz no Conselho da Grande Londres. O vereador conservador representante do distrito de Chelsea argumentou que Lucan “não atende, de nenhuma forma, os critérios para uma placa em sua homenagem e serve apenas para rebaixar os padrões aplicáveis, em um esforço insensato para cair nas boas graças do público”.

Mas os defensores de Lucan venceram o debate e uma placa azul dedicada ao ator foi inaugurada na sua antiga casa, no distrito londrino de Wembley.

Niel McKenna destaca algo um pouco diferente com relação ao mundo drag e às classes. Ele observa que os primórdios da cultura drag, na verdade, reuniam pessoas de classes diferentes.

“O mundo drag era essencialmente da classe trabalhadora, mas acho que também não havia distinção de classes”, segundo ele.

“E as interações entre as classes eram um tabu. Se você ler os julgamentos de Oscar Wilde, o que encontramos é a absoluta revolta, horror e incredulidade pelo fato de que Wilde podia dormir com um cavalariço desempregado, um valete desempregado.”

Apesar disso, Bloomfield destaca que, em diversos momentos da história, o mundo drag penetrou na cultura dominante.

Ao contrário das crenças comuns, a popularidade do universo drag não começou com RuPaul’s Drag Race.

Bloomfield menciona a comédia musical britânica Splinters, de 1929, que conta a história real do grupo drag Les Rouges et Noirs. O sucesso do filme foi tão grande que gerou duas continuações.

Bloomfield também menciona duas fontes diferentes, distantes entre si em um século, para demonstrar como o mundo drag foi importante em diferentes épocas.

Um artigo publicado no jornal britânico The Times em 31 de maio de 1870 indica que “em mais um ano ou dois, o ‘drag’ pode se tornar uma verdadeira instituição e carruagens abertas podem exibir seus ocupantes disfarçados sem despertar suspeitas”.

E o escritor Gilbert Oakley escreveu no seu livro Sex Change and Dress Deviation (“Mudanças de sexo e desvios de roupas”, em tradução livre), em 1970: “Na Grã-Bretanha, os atores que se vestem de mulheres hoje em dia estão na moda, de forma sem precedentes, desde a introdução da dama cômica nas salas de música e nas pantomimas”.

É claro que, atualmente, vivemos em outra era de onipresença do universo drag. As drag queens, especificamente, estão se tornando celebridades internacionais.

Mas as histórias que realmente exploram o que torna o mundo drag tão fascinante não estão sendo contadas — particularmente, as histórias de como esta forma de arte chegou ao que é hoje. Por quê?

“Eu culparia principalmente a amnésia cultural”, afirma Bloomfield, “e a sensação de que nós, no presente, gostamos de pensar que somos muito mais bem informados, abertos e conscientes do que as pessoas do passado; que os nossos estilos de vida, interesses etc. não têm precedentes”.

Quer meu romance ou musical ganhe respeito da crítica ou não, espero que, pelo menos, eles incentivem o público a refletir sobre os motivos que tornaram o mundo drag tão importante para as pessoas e para a nossa cultura.

Ao contar histórias contemporâneas sobre o impacto que essa forma de arte pode ter sobre as vidas humanas, espero incentivar as pessoas a questionar a história do mundo drag.

As pessoas que sabem disso não são muitas, mas o universo drag vem mudando vidas há séculos.

Matt Cain é patrono do Mês da História LGBT+ no Reino Unido. Seu romance “Becoming Ted” foi recentemente publicado pela editora britânica Headline Review.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.

BBC


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