Direitos humanos, gênero e diversidades

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São imagens e significantes que determinam a fantasia dos seres falantes. É a fantasia que determina o sentimento identitário e a orientação do desejo sexual

Marcos Antônio Ribeiro Moraes

Especial para o Jornal Opção

Em nossos dias, com os atuais exames de imagem, se tornou bem fácil saber se uma pessoa, em sua condição ainda embrionária, é menino ou menina. A partir de então se organiza os chás de revelação do sexo do bebê, a arrumação de quarto e enxoval, azul ou rosa, entre outros ritos. Mas, no decorrer da constituição de um sujeito sexuado, a coisa não parece ser tão simples assim. Pelo menos é o que me fez pensar uma senhora, em um assentamento rural, na Cidade de Goiás. Diante dessa senhora que conduzia feliz da vida seu netinho recém-nascido, me curvando sobre o bebê, perguntei, distraidamente: “É menino ou menina?” Ela respondeu: “Por enquanto é menino, vamos ver quando crescer”. Não vou negar, levei um susto. Mais tarde, conhecendo melhor esta senhora, soube que sua irmã mais velha, depois de ter sido casada e de ter tido quatro filhos, assumiu a condição de homem transexual. Esta foi a primeira vez que me senti interpelado pelo tema das diversidades de gênero. Desde então fui compreendendo que esse não era um assunto novo, mas que tem sido colocado em destaque na atualidade, nem sempre de forma aparentemente tranquila como para aquela avó. Ao contrário, sabemos que devido à condição de gênero, muitos sujeitos têm o seu direito de existir negado.

Segundo um recente relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado em 28/06/2020, 89 pessoas transgêneras foram assassinadas no Brasil, quantidade que supera em 39% a registrada no mesmo período de 2019. Segundo informa a referida associação, os números escancararam devido à omissão de autoridades no atual governo, que vem contribuindo para que essa população esteja no centro de um contexto amplo de vulnerabilidade, que inclui agora, os efeitos da pandemia de Covid-19.

A questão da sexualidade humana sempre foi foco de violência, sobretudo em tempos de crise. Segundo Rubi, “disputas sobre o comportamento sexual muitas vezes se tornam o veículo para deslocar ansiedades sociais, e descarregar a concomitante intensidade emocional. Consequentemente, a sexualidade deveria ser tratada com especial atenção em tempos de grande estresse social”.

Mas infelizmente, nos últimos anos, dentre as pautas que se destacam no modelo de governo que temos hoje, sobretudo no âmbito federal, encontram-se aquelas que visam desconstruir as poucas conquistas obtidas, no que se refere à relação entre direitos humanos e as diversidades sexuais e de gênero.

Os amantes, de René Magritte

Dentre essas conquistas, podemos destacar os esforços para ampliar atenção em saúde para as pessoas transexuais e transgêneras. Sobretudo com a publicação da Portaria nº 2803 de 2013, pelo Ministério da Saúde, que amplia para toda a rede SUS o serviço transexualizador, em sua modalidade clínica e cirúrgica.

Outra importante conquista se deu em 2018, com o provimento do Conselho Nacional de Justiça que autoriza a retificação do nome civil, sem exigência de intervenções médicas prévias. Possivelmente tais aberturas para a discussão dessa temática e a formulação de políticas públicas voltadas para essa população, ao dar visibilidade a esses sujeitos, tenha também feito levantar as forças contrárias, agressivas e reacionárias ao direito de existência das pessoas trans.

Apesar disso, as questões emergentes continuam colocando a temática da diversidade de gênero em relevo no discurso social. Caminhos e posicionamentos vêm sendo assumidos, sem volta, pelo menos esperamos que seja. Dentre esses, aquele das possibilidades de intervenções cirúrgicas e hormonais, predominantemente em um modelo médico, que muitas vezes correm o risco de compreender como normal, o alinhamento entre o sexo anatômico e a identidade sexual, ou seja, exclusivamente o sentimento de ser homem ou mulher. Mas é importante considerar que, muitos dos que vão por esse caminho, pela exigência de uma “passibilidade” — termo que se refere à possibilidade de “passar batido” — entre outras motivações subjetivas, também desejam que assim seja, para se livrarem das ironias e ataques transfóbicos, frequentemente sofridos.

Outros sujeitos reivindicam a liberdade de afirmação das identidades sexuais, nesse caso, não atreladas necessariamente ao sexo anatômico ou a intervenções médicas radicais. Afirmam de sua parte, o direito de transicionar de um gênero a outro, por vias estéticas, simbólicas e na vivência cotidiana do gênero psíquico que os representa.

Todo esse contexto se amplia de forma ainda mais complexa, articulando temas polêmicos, tais como as denominadas “novas sexualidades” — novas identidades de gênero e o não binarismo de gênero. A própria psicanálise passa a ser questionada com tais afirmações, como essa do não binarismo de gênero. A figura da esfinge, homem e mulher, volta a viver. O fato de que Édipo tenha respondido ao enigma não a destruiu para todo o sempre. Segundo Chnaiderman (2014, p.10), joje a figura da esfinge está presente nos corpos onde o masculino e o feminino se misturam, obrigando a repensar as diversas leituras de uma sexualidade que se construiria a partir do complexo de Édipo.

Com base na teoria psicanalítica, sobretudo a partir de Lacan, para que exista um sujeito sexuado, no laço social é necessário que o seu corpo e o seu Ser estejam presos, de forma singular, ao campo da linguagem. Nesse sentido existimos em diferentes laços sociais, sustentados por diferentes discursos, narrativas e, portanto, modos diversos de existência. Disso decorre a afirmação de que o inconsciente está estruturado como linguagem. E qual seria o impacto dessa afirmação para o debate acerca das diferenças sexuais?

Dentre muitas leituras, destaco a relevância do seguinte entendimento: são imagens e significantes que determinam a fantasia dos seres falantes, é a fantasia e não a anatomia que determina o sentimento identitário e a orientação do desejo sexual no humano. Por isso a sexualidade dos seres falantes não é natural e há tantas identidades sexuais e modos de orientação do desejo, quanto há fantasias. Eis uma questão que se coloca como uma pedra no sapato dos que se sentem inseguros por conta da ausência de “normalidade”, ou uniformidade no campo da sexualidade. Medo tão característico daqueles que defendem pautas alinhadas com o objetivo de sustentar a chamada normatividade. Sabemos, que a defesa do normal sempre vem de par com o desejo de estabelecer controle sobre a vastidão da subjetividade humana, feita de diversidades.

Não importando qual seja a escolha do sujeito, diante do real da sua sexualidade, ou seja, atuar pela via do real do corpo com intervenções médicas, ou pelo real da linguagem. Tanto numa como na outra modalidade, trata-se de uma questão de direito e de respeito à autonomia de escolha. Neste sentido, falamos atualmente de ataques e violências contra as subjetividades humanas, expressadas de diferentes maneiras, no campo da educação, das artes, da liberdade de pensar e existir.

Mas é importante considerar também que, na assistência em saúde ocorrem muitas negligências a tais direitos, traduzidas em descontinuidades no acesso aos serviços especializados. Não basta garantir a cirurgia de resignação sexual. Homens e mulheres trans continuarão por toda vida necessitando de acesso a serviços específicos e nem sempre isso é compreendido. Por exemplo, por questões fisiológicas, mulheres transexuais continuarão necessitando de urologia e homens transexuais de ginecologia, mas isso ainda não é bem entendido e favorecido no sistema de saúde. Essas demandas ainda esbarram em modelos não atualizados de circulação do paciente no fluxo da rede de assistência e na liberação de insumos.

Vivemos, portanto, em um momento de desafios, pertinentes a toda a sociedade, no que se refere aos direitos humanos de um modo geral, mas esses desafios também contemplam a necessidade de mais respeito e consideração das subjetividades e sobretudo dos direitos sexuais com suas diversidades.

Marcos Antônio Ribeiro Moraes é psicanalista, membro da Appoa, professor da PUC-Goiás, especialista em saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia. É colaborador do Jornal Opção.

Referências

CHNAIDERMAN. M. Transexualidades: Um olhar multidisciplinar. In COELHO, M.T.A.D.; SAMPAIO, L.L.P. EDUFBA. Salvador: 2014

MINISTÉRIO DA SAÚDE, Portaria Nº 2.803/DF: 2013

RUBY. G. Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade.

Jornal Opção


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