Cuba reforma Constituição para reverter décadas de homofobia

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Projeto de reforma aprovado na Assembleia Nacional redefine o casamento como a “união entre duas pessoas”

Miami

Pablo de Llano

A Assembleia Nacional de Cuba debateu neste domingo um artigo da futura reforma constitucional que abre caminho para o reconhecimento do casamento homossexual na ilha comunista. No anteprojeto, que foi aprovado no fim de semana pelos parlamentares e será submetidos nos próximos meses a consulta popular, o casamento é redefinido como a “união entre duas pessoas”. O texto atual especifica o matrimônio como a união de um homem e uma mulher. A aprovação do artigo representa um avanço importante num país que arrasta o peso de décadas de discriminação a seus cidadãos por sua orientação sexual, e que nos anos sessenta chegou a internar gays em campos de trabalhos forçados.

“Com esta proposta de regulamentação constitucional, Cuba se situa entre os países da vanguarda no reconhecimento e na garantia dos direitos humanos”, afirmou a deputada Mariela Castro, que é filha do ex-presidente Raul Castro e uma das principais promotoras do reconhecimento dos direitos da comunidade LGTBI na ilha, na qualidade de diretora do Centro Nacional de Educação Sexual. A parlamentar disse que a reforma constitucional estabelecerá as bases para que futuramente se possa aprovar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo em uma legislação específica, inclusive contemplando a adoção de crianças por casais de gays e lésbicas. “O Estado deve garantir a todas as famílias os seus direitos e as vias para alcançar estes fins”, acrescentou.

O deputado Miguel Barnet, presidente da União de Escritores e Artistas de Cuba, disse sentir “imenso orgulho” desse avanço. “Estamos inaugurando uma nova era. Esta é uma Constituição dialética e moderna. E, se for preciso quebrar a tradição, que se quebre. No socialismo não cabe nenhum tipo de discriminação entre seres humanos. Sou a favor do artigo 68 [sobre o casamento]da nova Constituição. Senhores, o amor não tem sexo”, afirmou. A parlamentar Yolanda Ferrer defendeu que a diversidade sexual seja “um direito, e não um estigma”, e pediu que “séculos de atrasos” sejam deixados para trás. “Quantas pessoas conhecemos que são homossexuais ou bissexuais e são pessoas dignas, e que estão a cada dia juntas de nós e muitas vezes vivem juntas, mas às quais negamos o direito de constituir família?”, questionou.

A perspectiva de que Cuba autorize o casamento homossexual foi recebida com satisfação pela comunidade LGBTI na ilha, mas em comentários nas redes sociais alguns ativistas salientaram a necessidade de que o avanço nesse aspecto dos direitos sociais seja acompanhado de mais liberdades políticas e de associação.

Roiniel Torres e Dariel Hernández passeiam pelo Malecón, a avenida litorânea de Havana.
Roiniel Torres e Dariel Hernández passeiam pelo Malecón, a avenida litorânea de Havana. Yander Zamora

O projeto de reforma constitucional não prevê nenhuma mudança no sistema político, mantém o Partido Comunista como único partido legal e, embora elimine a referência ao comunismo como modelo ideal, impõe a “irrevogabilidade do socialismo”. O texto foi aprovado unanimemente pelos 605 deputados e, com relação à Constituição vigente, de 1976, escrita sobre o molde das constituições do bloco comunista europeu, contém novidades substanciais, como o reconhecimento da propriedade privada e a instituição do cargo de primeiro-ministro. O projeto será submetido a consulta popular entre 13 de agosto e em 15 de novembro, e finalmente deverá ser aprovado em um referendo ainda sem data marcada.

Falando por telefone de Havana, o ativista LGBTI Isbel Torres, de 43 anos, dizia neste domingo estar “muito contente” com a mudança constitucional sobre o casamento, que ele não esperava. “Achava que as forças mais retrógradas dentro do Governo teriam o poder de evitar, mas felizmente não foi assim”. Torres vê na decisão um passo imprescindível, mas acrescenta que ainda resta “muito trabalho por fazer”. “Cuba continua sendo um país bastante homofóbico, mais nas províncias que na capital, é verdade; mas a homofobia e sobretudo a transfobia abundam, e em nível institucional a polícia e o Exército são lugares onde a homofobia se expressa de maneira terrível. Nas escolas, além disso, o bullying homofóbico é muito comum, e não existe nenhum tipo de prevenção.”

Uma das páginas mais obscuras do castrismo foi a existência, entre 1965 e 1968, das Unidades Militares de Ajuda à Produção, campos de trabalhos forçados para a “reeducação” de indivíduos que o regime do Fidel Castro considerava extraviados com relação à moral revolucionária. As tenebrosas UMAP recebiam delinquentes comuns, dissidentes políticos, religiosos e homossexuais, entre outros. Estima-se que nelas foram encerrados cerca de 30.000 cubanos, sendo 800 deles especificamente por serem gays.

Um passado de torturas

O historiador Abel Serra Madero, estudioso das UMAPs, conta ao EL PAÍS que os detentos chegavam a ser torturados nesses centros, e critica o fato de o Governo cubano nunca ter pedido perdão por isso, e muito menos indenizado as vítimas. “Sempre tentaram demonstrar que as UMAPs foram um erro, e Fidel Castro se isentou das responsabilidades dizendo que estava muito ocupado governando e não sabia o que acontecia ali. Mas não foram um erro isolado. As UMAPs foram um fenômeno sistêmico da revolução.”

A psicóloga Liliana Morenza, junto a dois homossexuais recluídos em 1967 na cidade de Camagüey.
A psicóloga Liliana Morenza, junto a dois homossexuais recluídos em 1967 na cidade de Camagüey. ARQUIVO DE ABEL SIERRA MADERO

Emilio Izquierdo, diretor da associação UMAP Miami, que denuncia o ocorrido nos campos de trabalhos forçados, considera que eles foram “um crime contra a humanidade que deveria ser julgado como tal”. Izquierdo, de 70 anos, passou dois anos preso numa UMAP da província de Camagüey por ser dissidente político e recorda a crueldade especial com que os detentos homossexuais eram tratados. “Eram separados do resto e faziam equipes de trabalho composto só por gays, dividindo-os em grupos diferentes os ativos e os passivos e submetendo-os a todo tipo de insultos, surras e trancamento em calabouços”.

Bar de Havana proíbe casal gay de tirar uma foto

Brian Canelles e Arián Abreu.
Brian Canelles e Arián Abreu.

P. DE LLANO, Miami

A homofobia continua muito viva em Cuba. Um caso recente de discriminação é o de Brian Canelles e Arián Abreu, que em 8 de julho foram expulsos de um bar de moda no centro de Havana, o Efe, por tirar uma foto se beijando. À revista El Estornudo, editada na ilha apesar da proibição da imprensa independente, Canelles contou que um funcionário do local lhe disse que o bar não queria “expor essa imagem”. Perguntou a que imagem se referia. “O público gay não interessa para o bar. Não queremos ganhar essa fama”, foi a resposta, segundo o relato de Canelles. Já depois da meia-noite, Abreu, Canelles e sua irmã foram expulsos do local. Segundo o jovem, um segurança agarrou-o pelo braço e o levou-o até a porta. “Eu disse a ele que havia gastado muito dinheiro no bar e que não iria embora sem tirar a foto. Aí ele me retirou e simplesmente fechou a porta”, disse Canelles à revista cubana, pedindo que a empresa se desculpe pelo ocorrido. “É um negócio privado, mas não merecemos ser tratados assim”, disse.

Em declarações ao Estornudo, uma fonte do bar disse que o estabelecimento não tem uma política de discriminação por orientação sexual: “Não somos contra nada. Este é um lugar aberto”, disse. Em sua página do Facebook, o bar publicou uma mensagem em que prometia “sempre erguer a bandeira contra a homofobia”.

O caso teve repercussão em Cuba, e muitas vozes se levantaram para denunciá-lo. Até o Centro Nacional de Educação Sexual, dirigido por Mariela Castro, filha de Raúl Castro, emitiu nota afirmando que “está a par do ocorrido recentemente no Bar Efe da capital, e, consequentemente, está trabalhando para conhecer detalhes dos fatos, auxiliar as pessoas afetadas no processo e informar às autoridades competentes”. Dois dias depois do ocorrido com o casal, uma edição extraordinária do Diário Oficial publicou um decreto em que, entre outras medidas, prevê multa de 2.000 pesos cubanos (287 reais) e o fechamento de qualquer negócio privado que cometer discriminação por gênero ou orientação sexual. O Código Penal cubano prevê até dois anos da prisão a quem discriminar a outra pessoa.

 

 

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/22/internacional/1532287928_730414.html

 


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