“Selvagem” – Drama francês retrata a prostituição masculina sem cair em estereótipos

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Diego Santos Vieira de Jesus*

No longa francês “Selvagem” (“Sauvage”, Les Films de la Croisade e La Voie Lactée, 2018), o diretor e roteirista Camille Vidal-Naquet apresenta a história de Leo (Félix Maritaud), um prostituto de rua de 22 anos, que faz seu ponto na beira da estrada perto de um aeroporto. O filme foi indicado ao César – o Oscar do cinema francês – de melhor primeiro filme em 2019 e selecionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2018, na qual Maritaud recebeu o prêmio de ator revelação.

Leo é um andarilho que não tem residência fixa e usa drogas pesadas. Embora realize qualquer vontade ou prazer, ele não atinge a própria satisfação plena, a conquista do amor por Ahd (Éric Bernard), prostituto que sonha em deixar a vida nas ruas. O protagonista demonstra uma ânsia enorme em permanecer na vida de prostituto

* Doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio e docente e pesquisador do Programa de Mestrado Profissional em Gestão da Economia Criativa da ESPM-Rio. É coordenador do Laboratório de Cidades Criativas (LCC) da mesma instituição.

por um desejo intenso de carinho e afeto, acompanhado da impossibilidade de se desvencilhar de um impulso maior de liberdade em relação a quaisquer compromissos que não fossem os estabelecidos por ele próprio para ele mesmo.

Por alguma limitação de inteligência, afeto ou oportunidades, Leo é carente e entende a carência de outras pessoas, encantando-se por quem desse a ele qualquer atenção. No local onde faz seu ponto, ele conhece Ahd, que assume um perfil másculo, define-se como heterossexual e entende que não há afeto envolvido na relação com clientes ou outros prostitutos. Leo, frustrado com o desprezo de Ahd, vagueia pelas ruas com roupas sujas, limpa o rosto com água de uma poça na rua e furta uma maçã disponível em uma bancada de uma venda para ter o que comer, sem parecer ter a noção de que suas ações possam ser socialmente vistas como inadequadas, bárbaras ou selvagens, como sugere o título do filme.

O sentimento não-trabalhado socialmente de Leo no contexto da prostituição torna-se o centro de uma conversa que ele e Ahd têm próximos a uma ferrovia. A ideia do transporte, ao longo do filme, vem associada metaforicamente a uma mudança de vida, à partida para um novo estágio, que ambos ainda viam à margem. Leo chega a sugerir que ele e Ahd deixassem juntos a vida nas ruas, mas Ahd o frustra novamente ao afirmar que Leo deveria arrumar alguém que fosse gay como ele. Todavia, a proteção que Ahd oferece a Leo nas ruas faz com que o protagonista se apaixonasse cada vez mais. O

sentido de parceria e camaradagem homossocial que, para Ahd, se desenvolvia entre ambos era entendido por Leo como expressão de um amor do homem rude, apesar de todas as frustrações que isso gerava.

Mais uma dessas frustrações fica clara quando, em uma boate, Ahd reencontra um antigo cliente que diz que queria viver com ele, um “velho”, como Ahd inclusive o chama. O sentimento amoroso não-correspondido por Ahd leva Leo a uma série de escolhas equivocadas, que o protagonista faz a fim de tentar sublimar seu desejo por Ahd, como a aproximação em relação a Mihal (Nicolas Dibla), que utiliza o sexo como um prelúdio para a extorsão, a chantagem e o furto de clientes.

Leo recorrentemente aparece em consultórios médicos, seja satisfazendo a fantasia sexual de um cliente na cena inicial do filme, seja efetivamente tratando da sua saúde. Depois de ser maltratado por Ahd, Leo vai a uma consulta com uma médica e se espanta quando ela pergunta se ele desejava tratar a dependência química. O não-entendimento da forma como a dependência química acabava com sua saúde mostra como Leo não desenvolvera um senso crítico aprimorado, nem mesmo para entender o que lhe fazia mal. Durante o exame físico, o toque maternal da médica faz com que Leo a abrace e receba dela um tratamento para sua tosse incessante.

Após mais uma tentativa frustrada de se aproximar de Ahd – que ia embora com seu “velho” para a Espanha –, Leo entra numa

trajetória de degradação absoluta, em que tem desmaios frequentes por conta de sua saúde debilitada, fuma cada vez mais crack e, após um dia acordar no asfalto, acaba por entrar no carro de um cliente psicopata. Ensanguentado e debilitado, Leo é amparado por Claude (Philippe Ohrel), cliente que, mesmo após ser desprezado por Leo como “velho” durante um programa, cuida do jovem e promete levá-lo para vierem juntos no Canadá.

Porém, no momento do embarque com Claude, Leo foge do aeroporto, entrando numa mata densa, na qual deita encolhido sobre as folhas e adormece como um animal selvagem. Ele parecia desenvolver sentimentos não-contidos pela lógica de socialização no ambiente da prostituição, de forma a não conseguir dissimular amor por alguém por quem efetivamente não sentia e garantir a sua liberdade para guiar o seu destino, sem que mensurasse as consequências que isso poderia trazer para ele mesmo e seu futuro.

“Selvagem” traz uma reflexão mais ampla sobre as motivações e os riscos da prostituição masculina a partir de um olhar mais humanizado sobre quem realiza a atividade. Dentre os motivos, diversos personagens que aparecem no filme apontam o dinheiro e a oportunidade de desenvolver relações mais intensas com clientes regulares, o que pode render a eles mais benefícios materiais. Os riscos seriam o contato com clientes violentos, os perigos relacionados a doenças sexualmente transmissíveis e a concorrência com outros prostitutos por clientes e pontos de prostituição.

Frequentemente, tais homens são retratados como “predadores” ou “pervertidos”, tendo sua imagem associada à delinquência, amoralidade ou criminalidade, em especial quando não têm onde morar ou buscam clientes nas ruas, como Leo. Entretanto, em vez de reforçar o “paradigma da patologia” em torno da prostituição, o filme parece romper com perspectivas que desumanizam os trabalhadores do sexo e generalizam características para esses homens. Ao deslocar o foco para as motivações pessoais do trabalho sexual e dos sentimentos envolvidos no processo de socialização no ambiente da prostituição, o filme consegue romper com a estigmatização, a estereotipação e a demonização do prostituto.

* Doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio e docente e pesquisador do Programa de Mestrado Profissional em Gestão da Economia Criativa da ESPM-Rio. É coordenador do Laboratório de Cidades Criativas (LCC) da mesma instituição.


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5 Comentários

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  2. Neven Reinier em

    Bacanal à intempérie

    “Chove. Nada em mim sente…”
    Citar é vulgar para o condutor pedante
    Exemplar letrado da geração rasca e à rasca
    Fuma o alcatrão que o conduz entre chuva e borrasca
    Este Vasco da Gama climatizado e dotado de GPS
    Visionário num Clio comprado a um sexagenário de má fama
    Conduz unanimemente, abstraído
    Torna-se um com o trânsito retraído da EN13
    Este séquito alcatroado de estafetas laborais
    Caminho revelador da falsa cortesia moderna
    Motivador de obscenidades jamais dirigidas presencialmente a um vizinho ou figura materna
    Ou a um cantor gago, admirado pela bravura concursal de vencer à custa da compaixão
    a mais recente iteração de uma falsa competição americana
    Para, arranca, tangente, para
    Na inimizade afligente da estrada, os impotentes choferes sem nome
    Muito a preceito de expressar o síndrome da pressa,
    Oportunizam o preconceito e reduzem o problema a um alegado:
    “Velho de merda com medo do chuvisco”
    Arriscam o petisco e como um enredo de peixes desbocados
    Mordem o isco da absolvição
    E apesar da incomparável condução de cada um
    Morrem aos bocados ou empalados na boca pelo radiador
    “Acidente de viação na nacional 13, quilómetro 40
    direcção Valença, resultou num lamentável óbito por…”
    Empalamento e periodicidade determinista
    Facto drástico, estatístico e não mais fantástico do que a cena de qualquer sinistro
    Nenhum repórter ordinário mencionará o rastro de sangue
    O número desumano bastará para não ferir susceptibilidades de futuros proprietários de obituários encurtados pela verdade:
    A estrada é tão democrática como desastrada!
    E sob a chuva indiferente que encobre os riscos que o caminho desponta
    Troviscos e rajadas de travagens redobram o tempo de viagem
    É mais uma afronta ao citador-condutor cético que, descontente e acinético, revista o nada
    Afigura-se-lhe na vista um grupo poético excluído do código 9-5-1-0
    Um eufemismo burocrático para o sexo remunerado a intempérie da estrada
    “São putas, mamã”, diz o fedelho no Corsa adjacente
    Mero observador inteligente, puto educado pelo tablet e recente masturbador compulsivo,
    conhece o anacrónico pecado ainda atribuído às senhores debalde
    Abençoadas sejam, com igualdade filhas da divindade obsoleta
    Que paradoxalmente as condena por missiva humana a não declarar IRS ou IVA
    Sem respeito à antiguidade transgressiva da profissão que O transcende em proveito
    Esta abrupta miragem de maquilhagem derrapada endossa o citador-condutor
    Ético portador de falsa moralidade e culpa acessória pelas pobres putas
    Qual feminista amedrontado, amante da vulnerabilidade, encosta-se à berma devagarinho
    Sem grande intenção de jactar-se pela boa acção concebida na sua cabeça,
    O palerma altruísta, alfarrabista prepotente, baixa o vidro ante a puta mais amazónica
    “Senhor, se solicita os meus serviços inteiriços, roliços e castiços seria deveras pertinente estacionar sem demora afora desta estrada transparente, longe do olhar”
    “Nada quero, senhora, senão ofertar-lhe algum dinheiro e abrigo da chuva”
    A prudente puta sorri e consente apenas um cigarro de oferta, diz que a amiga tinha sido levada por um condutor benevolente e devolvida entreaberta ao corredor da morgue
    Enverga o dinheiro na mesma o santo condutor, mas a puta resoluta dá meia-volta
    Revoltado, o citador-condutor atira o punhado de papel esclavagista
    Notas levadas pelo vento chamam à pista condutores sem sustento ao albergue da chuva
    A humanidade derrotada pela obrigação assumida de se conduzir para algum lado e livrar-se do nada que a tormenta
    Sedimentam ensopadas as papas de notas nas mãos desastradas de quem alimenta
    A troco de uma doação recusada pela nobre inquilina do caminho, ouve-se por uma última vez o menino:
    “Mamã! Ficamos sem gasolina!”

  3. Henrique Oliveira em

    Excelente resenha com uma análise humanizada sobre a prostituição masculina no Filme Sauvage. Aprofunda visões anteriores sobre o filme, trazendo uma visão mais pessoal sobre o fenômeno e as relações humanas envolvidas na prostituição masculina, além de uma abordagem pormenorizada do desempenho dos atores na película.
    Parabéns ao autor!

  4. Ilana Trotta em

    Impactante resenha do Dr. Diego Santos a cerca do marginalizado mundo da prostituição masculina no filme Sauvage. Realmente nos mostra um ponto de vista diverso do normalmente relacionado a esse universo, evidenciando toda solidão, fragilidade e busca de afeto que também estão presentes na vida dos prostitutos. Interessante argumentação que realmente nos faz querer assistir ao filme em questão. Excelente texto.

  5. Thiago Vieira em

    O texto é muito interessante e traz uma visão aprofundada sobre um excelente filme que rompe com uma visão estigmatizada dos trabalhadores do sexo. Parabéns ao autor.

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