Paraguai: provável candidatura colorada testa visibilidade da comunidade LGBTQIA+

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por Luiz Michelon Zardo

Apontado como favorito pelas pesquisas, o ex-ministro Santiago Peña tem defendido abertamente o matrimônio homossexual desde 2017

Luiz Marcelo Michelon Zardo (*)

Uma “ilha rodeada de terra”; assim definiu o país guarani Augusto Roa Bastos, mais célebre escritor da história paraguaia e vencedor do prestigioso prêmio Cervantes. Quase cinquenta anos depois, a máxima de Bastos segue atualíssima, para o bem e para o mal. Se por um lado causa inveja o bilinguismo dos paraguaios, que surpreendentemente lograram preservar suas raízes indígenas em um continente pouco generoso com a herança de seus povos nativos, o estado atual dos direitos humanos na nação vizinha chama a atenção negativamente, sobretudo quando em confronto com os demais membros do Mercosul. Em nenhuma outra área, porém, a disparidade é tão acentuada quanto nos direitos da comunidade LGBTQIA+.

Uma década após terem legalizado o casamento entre pessoas do mesmo sexo, Brasil, Argentina e Uruguai emergem entre as nações com mais garantias legais aos grupos não heterossexuais, segundo dados da International Lesbian and Gay Association (ILGA). Apesar dos inegáveis obstáculos a ainda serem superados, há que se destacar, nos últimos anos, grandes conquistas alcançadas principalmente nos dois maiores países do bloco, tais como a criminalização da homo e transfobia pelo Brasil, em 2019, e o reconhecimento oficial da identidade de gênero não binária na Argentina, obtido no ano passado.

Ao mesmo tempo, sem embargo, pouco se fez no Paraguai desde a ratificação da Constituição de 1992, a primeira da era democrática. A Carta Magna expressamente apenas consente a união entre “homem e mulher”, igualmente sem que haja nenhum instituto jurídico alternativo destinado a casais homossexuais, como a “união estável” ou a “união civil”. Da mesma forma, não existe nenhum tipo de proteção contra a violência motivada por LGBT+fobia, tendo sido crescentes os episódios de crime de ódio, notavelmente contra a população transexual, exaustivamente relatados pela mídia paraguaia.

A estrutura política do país deixa pouca margem de esperança para os grupos militantes pelas causas queer. Em particular, o rígido bipartidarismo que define as eleições paraguaias há quase um século e meio dificulta a alçada ao poder de siglas progressistas, já que se vê como praticamente impossível chegar ao Palácio de López sem o apoio dos partidos Colorado ou Liberal, ambos majoritariamente conservadores no que tange a pautas sociais. De fato, desde a redemocratização, nenhum postulante presidencial desses dois blocos defendeu a positivação de quaisquer direitos à comunidade LGBTQIA+. Na campanha de 2013, por exemplo, o então candidato Horácio Cartes, que se sagraria vitorioso, comparou “gays” a macacos, afirmando também que atiraria nos próprios testículos se tivesse um filho revelado homossexual.

No pleito de 2018, chamou atenção o súbito recuo do candidato liberal Efraín Alegre, que colocou em evidência a resistência que ainda tem a sociedade paraguaia frente às demandas dos grupos queer por mais direitos. Enquanto o vitorioso Mario Abdo, seu adversário colorado, desde o início se manifestou de forma contrária a mudanças legislativas que atendessem a casais do mesmo sexo, Efraín havia, quando ainda em pré-campanha, admitido considerar algum instrumento jurídico que garantisse segurança jurídica patrimonial a parceiros(as) homossexuais. Com a repercussão negativa gerada na imprensa, contudo,  o presidenciável rapidamente reformulou seu discurso, passando a enfatizar seu respeito à soberania da união entre “homem e mulher”, exclusivamente.

Agora, com as eleições de 2023 se aproximando, é natural indagar-se se haverá uma repetição dos pleitos anteriores ou, pelo contrário, os partidos majoritários darão sinais de estarem prontos a acolher, pelo menos parcialmente, as reivindicações das minorias sociais. Ao passo que no âmbito opositor é bastante provável a recondução de Alegre como candidato, as prévias coloradas prometem uma polarização maior, inclusive no que se refere às pautas LGBTQIA+. Do lado governista, representando o presidente Mario Abdo, Hugo Velázquez segue o receituário tradicional e rechaça discutir temas sensíveis como aborto e casamento igualitário. Seu principal opositor, entretanto, tem postura bastante distinta; apontado como favorito pelas pesquisas de opinião pública, o ex-ministro Santiago Peña tem defendido abertamente o matrimônio homossexual desde 2017.

A posição de Peña se notabiliza não somente diante do conservadorismo da opinião pública paraguaia e da maior parte de seu partido, mas sobretudo por ser ele membro da facção Honor Colorado, capitaneada justamente pelo ultraconservador Horácio Cartes. Vale relembrar, ainda, que nas últimas primárias, quando Peña disputou pela primeira vez a indicação colorada a uma postulação presidencial, sua postura mais progressista gerou uma onda de boatos nas redes sociais relacionando seu nome a um suposto romance gay no tempo em que vivera nos Estados Unidos. Se agora as pesquisas creditam ao ex-ministro ampla vantagem nas eleições internas em virtude da alta rejeição ao presidente Abdo, resta saber se essa abordagem será mantida em uma provável oficialização de sua candidatura, quando devem acirrar-se as pressões dos segmentos conservadores.

A esse respeito, não se podem negligenciar alguns sinais claros de que, embora lentamente, a sociedade paraguaia de fato mudou nos últimos anos. A Marcha do Orgulho, que ocorre em Assunção desde 2004, tem recebido cada vez mais visibilidade e, em sua mais recente edição, em julho de 2022, recebeu inclusive a presença de membros do corpo diplomático de diversos países europeus e americanos, o que indica também certa pressão internacional para que o Paraguai se adeque às modernizações legislativas das demais nações mercosulinas. Similarmente, em 2018, lançou-se o filme paraguaio Las Herederas, de grande repercussão social e logrando uma aclamação inédita ao cinema guarani pelos festivais, não obstante tenha como protagonistas um casal lésbico.

É evidente, no entanto, que tais mudanças têm sido lentas, com uma opinião pública ainda majoritariamente contrária a guinadas progressistas em questões de gênero e orientação sexual. A mais recente pesquisa do LAPOP Lab, filiado à Universidade de Vanderbilt, mostra que em 2019 apenas 13% dos paraguaios estavam de acordo com o casamento igualitário. Da mesma forma, só 18% manifestaram conformidade com que homossexuais concorressem a cargos públicos, o que demonstra a magnitude do potencial efeito nocivo de fake news como aquelas que afligiram a candidatura de Peña em 2017 e, em ocorrendo novamente, poderiam aumentar a pressão colorada para que o provável presidenciável recue em suas posições.

Dessa forma, se confirmada a indicação de Peña à campanha presidencial, estaremos defronte a uma situação inédita na história eleitoral paraguaia, com um candidato de um dos partidos majoritários declaradamente favorável ao matrimônio homossexual. Sua resiliência em manter a defesa da pauta, vale dizer, testará quão preparada estão a sociedade e o establishment paraguaios após o crescimento do movimento queer nos últimos anos. Seja como for, é inegável que se trata de uma grande janela de oportunidade para as forças progressistas do país. Sem uma candidatura própria competitiva, porém, resta-lhes contar com a pressão internacional e as crescentes discrepâncias entre o Paraguai e o restante do Mercosul, torcendo para que estas sejam suficientes para convencer os caciques colorados de que, em uma região cada vez mais interligada, os tempos de “ilha rodeada de terra” não mais têm vez.

(*) Mestrando em Relações Internacionais pelo Graduate Institute of International and Development Studies (Genebra, Suíça)

Sul21


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