Pessoas trans enfrentam dificuldades no mercado de trabalho em SC

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Quando começou a transição de gênero há seis anos, Christian Pedro Mariano, 46, trabalhava nas obras do aeroporto de Florianópolis. Apesar de não ter concluído a graduação em Psicologia, investiu em um curso de gestão ambiental que lhe garantiu postos formais de emprego na época em que ainda utiliza o pronome feminino para referir-se a si mesmo. Bastou iniciar a terapia hormonal, que lhe proporcionou entre outras mudanças o crescimento da barba e o tom mais grave da voz, para que conhecesse o desemprego.

A trajetória de Christian, que nasceu com um sexo com o qual não se identificava, é comum entre pessoas transgênero, travestis e transexuais. De acordo com um estudo do Núcleo Modos de Vida, Família e Relações de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (Margens/UFSC), que traçou um perfil psicossocial dessa população no Estado catarinense em 2017, apenas 19% têm emprego formal. Essa realidade faz com que a maioria não tenha direitos ou benefícios trabalhistas, perspectiva de aposentadoria ou sequer carga horária definida.

— Não consegui mais trabalho em lugar algum. Vieram só subempregos: cuidador de criança, auxiliar de limpeza, segurança de boates. As pessoas me dispensavam mesmo quando eu já estava bem diferente fisicamente, porque percebiam que sou um homem trans quando mostrava o meu documento, que ainda tem o meu antigo nome — relata Christian, que aguarda há dois anos na Justiça a retificação de nome e gênero.

A informalidade perdurou por quatro anos, até conhecer uma professora do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Cesusc) sensível à situação de vulnerabilidade econômica enfrentada por Christian. Foi contratado por ela como auxiliar administrativo no escritório de assistência jurídica da faculdade, onde trabalha há seis meses. Sente-se grato e aliviado por sustentar o crachá que lhe assegura o respeito ao nome social, mas espera que a transgeneridade fique em segundo plano como diferencial competitivo nas próximas oportunidades. No lugar, torce para que os próprios méritos falem mais alto.

— Aqui eles não me discriminam nem me favorecem por ser trans. É angustiante saber que essa foi uma situação específica, porque a gente espera passar por um processo seletivo como qualquer outra pessoa. Foi assim que eu disputei as vagas até cinco anos atrás, pela minha capacidade de resiliência e resolução de conflitos, mas hoje o fator transexual vem na frente de qualquer outra qualificação que eu possa ter — lamenta.

Não há um motivo único que justifique a exclusão de pessoas trans no mercado de trabalho, mas o Relatório da Violência Homofóbica no Brasil, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, indica que o preconceito seja o responsável por esse grupo acabar “tendo como única opção de sobrevivência a prostituição de rua”. O parecer é chancelado pela própria Associação Nacional de Travestis e Transexuais, que há anos alerta que 90% dessas pessoas estejam se prostituindo no país. “É importante salientar que a prostituição é uma profissão tão válida quanto qualquer outra. O que está em discussão aqui é o caráter de destino ou impositivo com que este ofício aparece nas trajetórias de vida de muitas pessoas trans e as violências que se atravessam no exercício deste trabalho”, acrescentam os estudiosos da UFSC.

A pesquisadora de gênero e mercado de trabalho, Jennifer Hartmann, justifica o cenário a partir de um conjunto de fatores que não pode ser visto isoladamente, mas resumido como transfobia.

— Há um desinteresse de empresas em contratá-las até para cargos que não exigem grande escolaridade. Na minha pesquisa, constatei que mesmo mulheres trans com alta escolaridade acabam em postos de trabalho que não são adequados ao seu grau de estudo e ainda assim correm um grande risco de serem demitidas ou mesmo de desistirem do trabalho devido a casos de transfobia — destaca a mestre em sociologia política.

 FLORIANOPOLIS, SC, BRASIL, 25.01.2018: Como é o mercado de trabalho para pessoas trans em Florianópolis. Christian Pedro Mariano que atualmente é auxiliar administrativo no Cesusc. (Foto: Diorgenes Pandini/Diário Catarinense)Indexador: Diorgenes Pandini

Após iniciar a transição de gênero, Christian ficou quatro anos desempregado até conseguir uma vaga de auxiliar administrativoFoto: Diorgenes Pandini / Diario Catarinense

Empresas começam a ser inclusivas

Apesar de não haver legislação específica que garanta espaço no mercado de trabalho para pessoas trans, assim como há com a lei de cotas para pessoas com deficiência, algumas empresas e consultorias têm dado o primeiro passo para aumentar a diversidade e a inclusão nas suas equipes. A começar por não fazer distinção de currículo entre pessoas cisgênero (que se identificam com o gênero atribuído no momento do nascimento) e transgênero, como a Flex, call center com sede em Santa Catarina e em São Paulo, onde nove transexuais já integraram o quadro de funcionários. Segundo a diretora de recursos humanos Angela Casali, no recrutamento são levadas em consideração apenas competência, aptidão e habilidade de cada candidatura.

— Depois de contratar, fazemos uma preparação com a liderança que vai recepcionar essa pessoa, preferencialmente escolhendo um líder mais experiente, porque sabemos que o preconceito existe. Então tentamos evitá-lo criando um ambiente propício para uma relação de respeito. Também acomodamos a pessoa em um andar onde haja banheiro unissex. Sabemos que funcionários relaxados são mais felizes e rendem mais — detalha.

Tal percepção é confirmada por Cris Kerr, CEO da CKZ Consultoria em Diversidade, que lamenta ainda não existirem pesquisas capazes de relacionar diretamente a contratação de LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgênero) à resultado para a empresa. Mas com base em um experimento da área de neurociência social da Universidade da Califórnia, ela aborda o conceito da dor social para defender que o cérebro humano vê o local de trabalho como um sistema social e, ao serem excluídos, funcionários experimentam impulsos neurais similares a uma pancada. Se sentem o medo da rejeição, ativam o sistema de defesa que altera o cérebro, diminuindo o desempenho, a capacidade de criar e de tomar decisões.

— Líderes capazes de entender essa dinâmica conseguem reconhecer e engajar mais os seus colaboradores, fazendo com que eles se sintam pertencentes ao time. A habilidade de conduzir o cérebro social dos colaboradores para alcançar um desempenho mais eficiente se tornará um dos grandes diferenciais na liderança no futuro — defende.

Obrigatório em grandes empresas, os treinamentos de viés inconsciente com os líderes também têm demonstrado resultado na inclusão de pessoas transgênero em vagas de emprego formais a partir da redução da estigmatização. Isso porque as multinacionais já se deram conta do potencial que esse grupo têm no ambiente de trabalho. Uma parte delas, inclusive com representantes nacionais em Santa Catarina, como a Whirpool, está reunida em torno do Fórum de Empresas e Direitos LGBT, que acumula 58 empresas de grande porte. O secretário-executivo Reinaldo Bulgarelli reforça a inovação possível a partir dessa postura de contratação e manutenção de pessoas com esse perfil.

— É possível recrutar melhor, porque se atrai talentos mais diferentes. E quando se faz capacitações, se quebra a mentalidade de que esse público não pode. A pergunta agora é: por que não contratá-los? O Estado, inclusive, poderia acelerar esse processo com a criação de cotas — reforça.

Assim como o Transempregos, que reúne em um site oportunidades de trabalho para pessoas transgênero, o Transcidadania também foca na reinserção social desse público. A diferença desse último é estar vinculado à Prefeitura de São Paulo. Em Santa Catarina, não há iniciativa governamental semelhante.

 FLORIANOPOLIS, SC, BRASIL, 25.01.2018: Como é o mercado de trabalho para pessoas trans em Florianópolis. Valentina Tubino que é empresária junto com o marido (e seu cachorro Paçoca). (Foto: Diorgenes Pandini/Diário Catarinense)Indexador: Diorgenes Pandini

Mulher trans, Valentina comanda duas empresas com o marido e, agora, contrata outras pessoas transFoto: Diorgenes Pandini / Diario Catarinense

Trans contratando trans

Assim como Christian Pedro Mariano, Valentina Tubino, 38, passou por uma transição de gênero tardia, quando já acumulava três décadas de vida em um corpo masculinizado. Inspirada pela cartunista Laerte Coutinho, ela precisou vivenciar um incidente aéreo em 2011 para ter a coragem de mostrar ao mundo que era uma mulher. Mesma situação rendeu-lhe um trauma de avião e inúmeras sessões de terapia, além do afastamento do trabalho na companhia aérea em que atuava como comissária de bordo.

— Percebi que não poderia morrer daquela forma, naquele corpo. Foi quando comecei a transição. E entrei na reabilitação profissional. Quando a médica viu que eu estava transitando, me disse que não tinha mais obrigação nenhuma de me recolocar no mercado de trabalho, que seria por minha conta — lembra a mulher trans que vive em Florianópolis.

Prevendo a dificuldade que teria pela frente para conseguir um emprego formal já no corpo feminino, ela voltou a estudar. Investiu em uma graduação em gestão financeira para tornar-se mais atrativa aos avaliadores.

— Eu falo inglês, comecei duas faculdades, tive bons empregos, fiz vários cursos em várias áreas. Mas sei que, ainda assim, não é fácil conseguir um emprego sendo trans. As pessoas não dão oportunidade em razão do preconceito e aí há as que aceitam ‘bicos’ e as que aceitam sobreviver pela prostituição, nenhuma delas merecedora de julgamento — atribui Valentina.

A saída encontrada por ela foi a da administração. Assumiu a gestão de duas empresas do marido, uma de contabilidade e outra de engenharia e segurança do trânsito. Na posição de líder, ela conta que sua condição já surpreendeu alguns candidatos, mas garante que não deixou de considerá-los para a vaga por uma suposta discriminação aparente. Também diz já ter contratado pessoas trans.

— O resultado foi positivo em todas as vezes que uma mulher trans passou pela empresa. Elas se dedicaram, agarraram mesmo a oportunidade. Só não contratei mais porque a qualificação é baixa, já que todas as portas anteriores foram fechadas para elas — comenta.

Tanto Christian, quanto Valentina têm memórias negativas do período escolar, quando sofriam bullying. Acreditam, portanto, que a mudança de perspectiva em relação ao grupo a que pertencem está associada à educação. Também vão seguir, agora, pelo mesmo caminho: a graduação em direito, para ampliar as conquistas das pessoas transgênero.

O perfil psicossocial das pessoas trans em SC

O Núcleo Modos de Vida, Família e Relações de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (Margens/UFSC) construiu, em 2017, um perfil psicossocial de travestis e transexuais no Estado. Abaixo, estão alguns dos dados levantados pela pesquisa que estão relacionados à empregabilidade e inserção dessa população no mercado de trabalho:

ESCOLARIDADE
Ensino médio: 34%
Ensino superior: 6%
Ensino superior incompleto: 7%
Continuam estudando: 15%

TRABALHO
Sim: 86%
Como profissionais do sexo: 63%

TRABALHO FORMAL
Não: 74%
Sim: 19%
Não se aplica: 6%
Não responderam: 1%

PRINCIPAIS VIOLÊNCIAS SOFRIDAS
Discriminação: 76%
Psicológica: 68%
Física: 62%
Institucional: 43%

AGENTE QUE PRATICOU A VIOLÊNCIA
População em geral: 65%
Colegas de trabalho: 53%
Chefe: 25%

Fonte: Margens/UFSC

 

http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2018/01/pessoas-trans-enfrentam-dificuldades-no-mercado-de-trabalho-em-sc-10137048.html


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