Gays e lésbicas também envelhecem. Com preconceitos colados à pele

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As pessoas LGBTI ganham cabelos brancos e, além das fragilidades da velhice, têm de enfrentar obstáculos enraizados na sociedade. A discriminação é dupla: é a idade e é a orientação sexual. Portugal tem um projeto para abanar consciências.

Texto de Sara Dias Oliveira

António Serzedelo tem 73 anos, é gay, fundador e presidente da Opus Gay, um dos mais antigos ativistas e autor do primeiro manifesto da causa LGBT em Portugal. Já ouviu de tudo: o velhote que ainda respira e que anda a tirar dinheiro ao país que deveria ir para os tratamentos de HIV de gente jovem; o velho que anda a espalhar HIV pelo mundo e que se é apanhado sozinho na rua é que vão ser elas.

“É difícil envelhecer pelas capacidades que se vão perdendo. E, ainda por cima, levamos com carradas de suspeições e desprezo que estão impregnadas à nossa pele”, afirma. O Mundo não pára de surpreender. Em tempos, uma amiga sua foi falar de um projeto dedicado à velhice das pessoas LGTBI num programa de televisão finlandês. Espanto geral no pequeno ecrã. “Ficaram surpreendidos por haver velhos LGBTI. Se calhar, pensavam que chegados a uma certa idade se evaporavam todos.”

Há discriminação na velhice. “Uma idosa, lésbica e negra tem logo uma porrada – desculpe-me o termo – de discriminação. Tem de ter um escudo para não ser ferida todos os dias. E se é uma pessoa LGBTI deficiente, em cadeira de rodas, como é que é?” A pergunta fica em suspenso, a resposta subentendida. “Este assunto tem de ser falado, como se fala, por exemplo, na violência doméstica. Os serviços públicos não estão alertados para estas questões.”

O Projeto Best4OlderLGBTI, que acaba de ser apresentado em Portugal, e que pretende lutar contra a discriminação com base na idade e na orientação sexual, é muito bem recebido pelo presidente da Opus Gay. “É muito importante, muito importante. Pela primeira vez, vamos falar destas questões. Vamos também perceber o que se faz lá fora.” Até porque as pessoas LGBTI na terceira idade são discriminadas duplamente: pela idade e pela sexualidade.

António Serzedelo faz ginástica três vezes por semana para “não ter de vestir as calças encostado à parede”, está a tirar um mestrado em Ciência das Religiões, faz o programa de rádio “Vidas Alternativas”, é vogal na Junta de Freguesia de Arroios, lidera a Opus Gay. O que realmente o preocupa? “Preocupa-me o avanço da extrema-direita em Portugal, os discursos racistas e homofóbicos. Preocupa-me a situação mundial e preocupa-me a violência entre as pessoas e a violência contra as mulheres.”

O escritor Richard Zimler admite que não será um caso típico de discriminação com base na orientação sexual mas, de qualquer forma, pedirá sempre o livro de reclamações quando achar que não está a ser bem tratado onde quer que esteja, como já aconteceu. Não tolera faltas de educação.

“As pessoas velhas, quer sejam homens ou mulheres, homossexuais ou heterossexuais, brancas ou negras, são um problema na nossa sociedade”, refere. Por várias razões. A cultura ocidental é muito virada para a juventude, para o culto da beleza e do corpo, e a sabedoria dos anciões deixou de ser valorizada. “Hoje em dia, os velhos são considerados um peso.”

Com todas as fragilidades e vulnerabilidades que os anos carregam consigo. “A grande diferença é que as pessoas LGBTI enfrentam mais uma dificuldade: o preconceito. Ainda vivemos numa sociedade em que existem preconceitos em relação aos homossexuais, às lésbicas, e que podem, em qualquer circunstância, manifestar-se num lar, num hospital, num supermercado, nos correios, nas finanças.”

A comunidade LGBTI encontra mais obstáculos, mais barreiras. E à medida que os anos passam, a situação não melhora. São velhos, ficam mais enfraquecidos, mais frágeis. Richard Zimler dá um exemplo: uma eventual reação negativa quando um gay chama pelo seu marido num hospital ou uma lésbica que quer saber da sua mulher numa unidade de saúde. “Temos de ser muito corajosos e fortes para reivindicar os nossos direitos”, sublinha.

Por isso, programas de consciencialização, como o Best4OlderLGBTI, são bem-vindos em vários locais: bibliotecas, restaurantes, cafés, hospitais, clínicas, centros de dia, estações de metro, estações de comboios, finanças, em todas as instituições públicas. “Hoje em dia, ser velho é uma vergonha e essa ideia é completamente idiota e absurda.”

Sair do armário, voltar ao armário

Em 2015, um inquérito do Eurobarómetro sobre Discriminação revelava que a intolerância com base na orientação sexual era a segunda principal forma de discriminação na União Europeia com 58%, seguindo-se a discriminação pela identidade do género com 56%, e a discriminação pela idade com 42%. Na Finlândia, há um estudo que revela que um terço da população mais velha não usa os serviços de saúde por ser LGBTI. No Reino Unido, um quinto dos idosos LGBTI não se sente confortável a partilhar a orientação sexual com o seu médico.

Liliana Rodrigues, investigadora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, ex-docente do Instituto Superior de Saúde, diz que ainda não existe muita investigação em torno das questões LGBTI e envelhecimento. Há, no entanto, a perceção da realidade, do que vai acontecendo.

Além das vulnerabilidades inerentes ao envelhecimento, as pessoas LGBTI têm preocupações acrescidas. “Não é uma soma de opressões, é uma multiplicação de opressões”, repara. Se habitualmente um processo de institucionalização num lar de um casal heterossexual já é complexo na questão da partilha de quarto, a dificuldade sobe de nível se for um casal do mesmo sexo no mesmo compartimento.

Os velhos LGBTI andam abaixo do radar da visibilidade, como se não existissem, e os preconceitos ganham terreno. E quanto mais tempo passa, mais complicado se torna assumir a sua orientação sexual quando se é velho, como se houvesse uma parede social. “Estas pessoas, pessoas vulneráveis, são consideradas sobreviventes, acabam por ultrapassar barreiras estruturais.” Liliana Rodrigues fala em obstáculos, como negar acessos a pessoas LGBTI em serviços públicos, ou manter esses assuntos como tabu em várias áreas da sociedade.

A população está a envelhecer e Portugal é um dos países mais envelhecidos da União Europeia. O Projeto Best4OlderLGBTI – L de Lésbicas, G de Gays, B de Bissexuais, T de Travestis, Transexuais, Transgéneros, e I de Intersexuais – acaba de ser lançado para lutar contra a discriminação e promover os direitos das pessoas mais velhas LGBTI, através de campanhas de sensibilização pensadas para uma sociedade mais inclusiva. Um dos principais objetivos é diminuir desigualdades e discriminação em serviços públicos, cuidados de saúde e instituições sociais, bem como encorajar a denúncia de violação de direitos.

“Os idosos, por si só, já são vistos como assexuados. Já sofrem desse preconceito. Imagine-se o que é ser um idoso LGBTI”, alerta Maria João Azevedo, psicóloga e investigadora do CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, envolvida no Projeto Best4OlderLGBTI. E há a questão adicional de pessoas LGBTI que saem do armário em idades tardias e que, por dificuldades em “assumirem a sua identidade e a sua orientação sexual”, querem voltar ao armário. Vidas complexas, com o dedo da discriminação sempre apontado.

A sociedade tem responsabilidades nestas matérias. Se nas práticas profissionais, diárias, em instituições sociais como lares ou centros de dia, ou em unidades de saúde, houver pensamentos e atitudes homofóbicas, a situação complica-se e a prestação de cuidados pode ficar comprometida.

“Há estudos que mostram que pessoas, em idades mais tardias, inibem-se de falar com os seus médicos, recusam, sentem algum desconforto, porque não vão ser devidamente atendidas e compreendidas”, adianta Maria João Azevedo. O Best4OlderLGBTI também incide aqui: “É necessário falar sobre este assunto, sensibilizar a comunidade em geral, tornar os profissionais de saúde mais conscientes de que é preciso atender às necessidades das pessoas LGBTI, que têm de ter um tratamento igual”.

Rita Tavares de Sousa, mestre em Ciências da Educação, também está envolvida no Best4OlderLGBTI. “É importante desconstruir imagens negativas sobre o envelhecimento e a sexualidade”, sublinha. A estratégia do Best4OlderLGBTI está planeada e a ação será feita a vários níveis. Um programa de intervenção, olhos nos olhos, para profissionais de instituições de saúde e de apoio social para mitigar atitudes negativas em relação à sexualidade na velhice. Tudo em nome do respeito dos direitos dos LGBTI mais velhos e uma forma de garantir que as suas necessidades específicas sejam reconhecidas, assegurando igualdade no acesso e atendimento.

O projeto inclui um site com testemunhos em vídeo, informação sobre direitos, legislação, literatura, pesquisas e investigação que estão a ser feitas na área. A ideia é discutir mitos, estereótipos, atitudes preconceituosas, consequências nas pessoas idosas em geral, e nas LGBTI em particular. Haverá também mupis, outdoors, cartazes e folhetos para chegar também aos que não estão familiarizados com as novas tecnologias.

Além de Portugal, esta campanha será desenvolvida em Itália, Grécia, Irlanda, Holanda e Roménia. No nosso país, o projeto é desenvolvido pelo Centro de Atendimento e Serviços 050+ (CAS050+) com o apoio do CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, do ICBAS – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e do Programa Direitos, Igualdade e Cidadania da União Europeia. O Best4OlderLGBTI andará no terreno até ao final de outubro de 2020. A missão estará cumprida quando a sexualidade das pessoas mais velhas, sobretudo das LGBTI, seja aceite sem preconceitos ou estigmas com base na idade, na orientação sexual e noutras opções de vida.

 

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