A falência da Hollywood de Weinstein: os escândalos sexuais, os abusos de poder e a ausência de valores

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Ricardo Rodrigues

Desde 5 de outubro, quando o The New York Times publicou uma peça a expor sérias acusações contra o magnata de Hollywood, Harvey Weinstein, que mais de 45 homens dentro da indústria das artes, do jornalismo e da política norte-americana foram acusados de assédio sexual, má conduta e, em alguns casos, de violação.

Muita tinta tem corrido nos últimos meses e cada vez mais são as mulheres e os homens a denunciar outros casos de agressão sexual que sofreram, ou que parentes dos mesmos sofreram, ou que amigos, conhecidos sofreram. Além de este rebentar da bolha se amplificar a muitas outras áreas da vida da elite anglo-saxónica, a que está a ser mais escrutinada neste processo é Hollywood, essa fábrica dos sonhos e utopias que revela agora algumas das suas maiores fragilidades: a falência de valores e o aproveitamento dos que estão no topo da cadeia alimentar.

O presságio já não era bom e as suspeitas já eram muitas

Recapitulando a 2013, cinco anos antes da peça do The New York Times a denunciar as décadas de assédio sexual por Harvey Weinstein, Seth MacFarlane aproveita o momento do anúncio das nomeadas ao Oscar na categoria de melhor atriz secundária para congratular as 5 mulheres “por não terem mais que se fingir atraídas por Harvey Weinstein”. Ao qual uma sala de teatro recheada de jornalistas responde com sonoras gargalhadas enquanto uma Emma Stone, ao lado, sorri de uma forma desconfortável.

Ainda ao The New York Times, a 19 de outubro, o realizador Quentin Tarantino disse em entrevista que há algum tempo que “sabia o suficiente para ter feito mais“. “Havia mais do que apenas os rumores normais, a cusquice normal. Eu sabia que ele tinha feito algumas dessas coisas“. Rematou ainda com “o que fiz foi marginalizar os incidentes“, e continuou a fazer filmes com Weinstein, não fosse ele um dos homens mais poderosos da indústria cinematográfica norte-americana e, por consequência, do mundo.

#9 Quentin Tarantino

E é exatamente devido a esta conjuntura de poder que havia tantos outros profissionais a assobiar para o lado e tantas outras vítimas a não dizerem nada em público, com medo das represálias. Esta conjugação da fatores levou a que o paradgima se prolongasse por longas e duradouras décadas, conduzindo a que indivíduos como Harvey Weinstein se aproveitassem da sua posição e estatuto dentro da indústria para fazer o que queriam sem que houvesse qualquer represália.

No seguimento das primeiras denúncias dos casos Weinstein surgiu uma catadupa de outras acusações contra o magnata e, rapidamente, contra outros profissionais da indústria cinematográfica e de outras. Rapidamente há uma compreensão de que não são casos pontuais, mas antes um paradigma há muito tempo instaurado, perpetuado pela misoginia, o machismo e a hierarquização em ambientes profissionais.

Ainda no seguimento das denúncias a Weinstein, a BBC Radio 5, em conjunto com a ComRes, encomendou um estudo sobre assédio sexual em ambiente profissional. Esse mesmo estudo revelou que 53% das mulheres entrevistadas admitem terem sido alvo de assédio sexual no trabalho. Um quinto dos homens admitem também terem sido vítimas do mesmo tipo de comportamentos.

Das mulheres que admitem terem sofrido de assédio sexual em ambiente de trabalho, 63% das mesmas admite não ter feito denúncia. Já nos homens a percentagem sobe para os 79%.

O perpetuar de um sistema

Recentemente a TIME Magazine anunciou que a pessoa do ano foi o movimento #metoo, criado por Alyssa Milano, atriz e ativista norte-americana. O movimento visa a partilha de experiências de assédio sexual que mulheres e homens sofreram ao longo da vida, e, acima de tudo, incentiva à “quebra dos silêncios“, mostrando que é um problema demasiado generalizado para que as vítimas fiquem caladas com medo de repercussões.

É precisamente através da intimidação e do medo que os agressores conseguem conter as vítimas de falar, misturando ainda o preconceito social que existe com estas situações, as pessoas que sofrem de assédio sexual são, desde cedo, incentivadas a ficar caladas. São estes fatores e consequências que perpetuam depois o sistema, e que nos ajudam a explicar como é que um agressor pode levar décadas a ser descoberto – se o é de todo -, como Harvey Weinstein e Kevin Spacey.

“O sistema perpetua-se e alimenta-se do medo e as vítimas multiplicam-se e cria-se uma bolha a nível global.”

Em entrevista para o artigo da TIME sobre a Pessoa do Ano, uma enfermeira anónima (preferiu manter a sua identidade mesmo depois do movimento mais recente ter eclodido) partilhou a sua experiência: ” Eu pensei, o que é que aconteceu? Porquê que não reagi? (…) Fiquei a pensar… Será que fiz algo? Será que disse algo? Será que o fiz pensar que o que ele fez seria OK?“. A revista continua a dizer “Ela ainda se lembra da camisola que vestia nesse dia, ainda sente a temperatura das mãos do agressor no seu corpo“.

“Quase todas as pessoas que a TIME entrevistou sobre as suas experiências de assédio expressaram um medo esmagador das represálias que podiam acontecer a si próprias, às suas famílias ou aos seus postos de trabalho se denunciassem os acontecimentos”.   

Stephanie Zacharek, Eliana Dockterman e Haley Sweetland na TIME

O sistema perpetua-se e alimenta-se do medo e as vítimas multiplicam-se e cria-se uma bolha a nível global. O que aconteceu com Weinstein motivou ao rebentar dessa mesma bolha, pelo menos daquela que inclui as elites anglo-saxónicas. A destruição do magnata da indústria de cinema mais poderosa do mundo é um símbolo perfeito de combate ao medo instalado nas vítimas e o despertar que precisávamos para colocar o assunto em praça pública. Mas será o suficiente?

A falência de Hollywood: de Weinstein a Spacey

Falámos com Marta Ramos, Diretora Executiva da Associação de Solidariedade ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo -, a mais antiga associação de defesa dos direitos LGBTI em Portugal. Colocámos em cima da mesa o caso Weinstein como ponto de partida, mas abordámos o outro gordo, enorme, elefante em Hollywood: o caso Kevin Spacey e Anthony Rapp.

Marta Ramos por Ana Nunes da Silva

Como mulher, e acho que isto é absolutamente transversal, sei bem a realidade e extensão do assédio contra as mulheres” começa Marta Ramos por explicar. “Nem sempre foi um assunto, raramente é reprovado e felizmente teve e continua a ter visibilidade por ser contra Harvey Weinstein, por envolver tantas mulheres e ao longo de tantos anos e, acima de tudo, por não se esgotar na pessoa do Harvey Weinstein.”

Enquanto diretora de uma associação tão relevante como a ILGA na defesa dos direitos de uma comunidade de minorias, Marta Ramos é incisiva “como para qualquer outro crime, se não se fala, não existe. (…) Visibilidade faz aumentar o número de denúncias, não porque haja um aumento de casos, mas sim porque as pessoas conseguem identificar-se com as histórias de outras pessoas e conseguem finalmente ter a validação de que não estavam erradas e a culpa até foi – pelo menos em parte – delas.

E um dos grandes casos que se seguiu na lógica Weinstein foi a denúncia feita contra um dos mais influentes atores de Hollywood; Kevin Spacey. Anthony Rapp a 29 de outubro fala pela primeira vez num artigo do Buzzfeed sobre os avanços sexuais de Spacey contra ele quando tinha apenas 14 anos. Seguiu-se uma avalanche de tinta nos jornais: um comunicado oficial do ator (que o podemos apenas descrever como lamentável), mais tinta, um assumir da sua homossexualidade, mais tinta, e finalmente, mais denúncias e mais tinta.

Declaração oficial de Kevin Spacey às acusações de assédio sexual de Anthony Rapp.

 

No dia em que Spacey oferece a sua justificação através desta publicação na sua conta oficial do Twitter, Owen Jones do The Guardian responde com “Como te atreves Kevin Spacey? Alimentaste uma mentira perversa contra todos os homens gay“.  O aproveitamento da situação para admitir a sua homossexualidade conetou, inevitavelmente duas ideias muito perigosas e as redes sociais e a maior parte da opinião pública incendiou-se.

“O coming out de Spacey é um profundo ato falhado que em nada empodera outras pessoas LGBTI.”

É absolutamente fundamental que pessoas como Kevin Spacey, com carreiras importantes e públicas, possam dizer alto e bom som quem são e de quem gostam – se assim quiserem. A questão aqui foi a forma como fez o seu outing“, diz-nos Marta Ramos, que partilha da preocupação de Jones com as relações estabelecidas neste comunicado e é peremptória: “O coming out de Spacey é um profundo ato falhado, que em nada empodera outras pessoas LGBTI. A ILGA presta um sem número de serviços onde encontra e lida com situações de vitimação, em circunstância alguma poderá compactuar com comportamentos abusivos, desrespeitadores e condescendentes como o deste tweet de Spacey.

Não leio neste tweet qualquer sensação de alívio por finalmente dizer a verdade, só leio, infelizmente, violência, desvalorização do outro, medo do impacto, falta de vergonha do que fez, e poderia aqui escrever mais umas quantas frases só com todas as agressões que este tweet incorpora” continua Marta Ramos sabendo que, até agora, não houve uma real consequência jurídica ao caso Spacey e Weinstein. Ambos de carreiras destruídas limitam-se a dar entrada na mesma clinica do Arizona para o tratamento de adição sexual.

Marta Ramos acaba com aquilo que podemos fazer, enquanto sociedade e comunidade: “É preciso contrariar esta realidade, é preciso deixarmos de tentar ter empatia com a pessoa agressora e procurar causas – e desculpas – para o(s) comportamento(s). Temos a obrigação, enquanto sociedade cada vez mais esclarecida e que procura desconstruir dogmas sociais impostos só porque sim, de validar a vítima, de a apoiar e empoderar desde o início (no incentivo à denúncia) e de continuar do seu lado mesmo que as coisas acabem por não correr como deviam.” 

Ainda estamos num período de rescaldo desta bolha que rebentou em Hollywood e como um sketch do Saturday Night Live referencia e muito bem: “Bem-vindos ao inferno/ É este o nosso mundo agora? / Mas há um segredos que todas as mulheres já sabiam… / Este tem sempre sido o mundo!”. A falência de Hollywood é latente e podemos esperar imensas emissões de cerimónias de prémios a referir o assunto em defesa das vítimas para uma audiência cheia de predadores e agressores por descobrir.

*A entrevista na integra será publicada brevemente no Espalha-Factos.

Nota: Comecei a escrever este artigo a 12 de novembro de 2017. Na altura abria o texto com a acusação a “mais de 23 homens” depois da denúncia a Weinstein. Hoje, 18 de dezembro de 2017, o texto abre com “mais de 45 homens”.

 

https://espalhafactos.com/


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