Como ativistas gays foram convidados por engano a visitar a URSS dos anos 70

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Ao confundir ativistas gays com comunistas, liderança soviética da década de 1970 convidou grupo a visitar Moscou – onde a homossexualidade era criminalizada. Em entrevista, guia turística responsável relembra o caso.

É uma história insólita de 1978: enquanto mais de 1.300 pessoas em todo o país eram condenadas pelos tribunais soviéticos por “relações sexuais com homens”, o Partido Comunista da União Soviética (PCUS) convidou ativistas gays de Berlim Ocidental para Moscou. Atos sexuais entre homens eram punidos com até cinco anos de prisão ou trabalho forçado. Para relembrar o caso, a DW conversou com Larisa Beltser-Lisyutkina, cientista cultural e ex-professora da Universidade Livre de Berlim.

DW: Como você acabou por acompanhar um grupo de homossexuais alemães em uma visita à União Soviética?

Larisa Beltser-Lisyutkina: Depois de me formar na Universidade Estadual de Moscou, trabalhei no Instituto do Movimento Internacional do Trabalho. Como seus funcionários eram fluentes em idiomas estrangeiros, o Comitê Central do PCUS nos pedia para cuidarmos de convidados estrangeiros de vez em quando.

Um dia fui convocada pelo curador do Comitê Central. Ele disse que alguns jovens comunistas de uma organização chamada HAW viriam nos visitar. Eles apoiariam nosso país e buscariam contato com os jovens. O camarada Kapitonov os conheceu durante uma viagem a Berlim Ocidental e os convidou para visitar Moscou. Ivan Kapitonov foi secretário do Comitê Central do PCUS, um cargo muito importante. Fiquei surpresa ao não conseguir encontrar em qualquer diretório o nome da organização que representava nossos convidados. Foram conhecidos da Alemanha Ocidental que esclareceram a situação ao me explicarem que HAW significava “Homosexual Action West Berlin” (“Ação Homossexual  Berlim Ocidental”).

Mas eu já tinha recebido vouchers (vales) com os quais eu podia pagar qualquer quantia em qualquer restaurante, hotel ou cinema. No aeroporto, testemunhei a chegada de um estranho grupo: dois homens hippies, jovens e magros, uma mulher que na verdade era inglesa e um buldogue. Nos dirigimos para o hotel Metropol em uma limousine.

Os rapazes imediatamente perguntaram: “Onde estão os clubes de jovens?” Eu disse: “Temos clubes juvenis na organização comunista de jovens Komsomol e nas universidades”. “Não, esses clubes onde os jovens se encontram por vontade própria. Como discotecas”, replicaram. “Claro, o Komsomol também tem discotecas”, respondi.

No dia seguinte, eles perguntaram: “Onde estão os clubes gays?” Eu disse: “Não há clubes especiais para gays. Os homossexuais apenas se misturam com os jovens”. Durante três dias mostrei a eles Moscou, a ópera e os restaurantes. No quarto dia, quando eles insistiram na questão, eu os levei a um café tranquilo e abri o jogo: “Não há boates gays. Ninguém pode ser abertamente gay sem ser punido. Conheço pessoas que estão na prisão por causa disso”. Foi então que eles disseram: “Temos que encontrar pessoas da comunidade gay e perguntar a eles o que está acontecendo”.

O restaurante Arbat, em Moscou no final dos anos 60 Um restaurante de Moscou no final dos anos 60

DW: Você tinha algum amigo gay?

Sim, mas ninguém se atreveria a ter contato com essas pessoas. Era muito perigoso. Expliquei a eles como a situação era complexa, mas eles não desistiram: “Onde os gays se conhecem?” Eles se encontram em banheiros públicos, eu disse, às vezes há anotações com números de telefone nas paredes. Eles queriam então saber onde ficava o banheiro público mais próximo. Os banheiros públicos de Moscou se encontravam em condições deploráveis. Mas me lembrei de um que era mais ou menos limpo. Prometi que iríamos lá e que meu marido os acompanharia.

No dia seguinte, estávamos neste banheiro público. A inglesa esperou com o buldogue em um banco, porque eu a avisei: “Não leve o cachorro com você, pois você não poderá limpá-lo mais tarde”. Fui ao banheiro feminino. Fotografei graffitis eróticos e anotei o que havia no local. E ouvi risadas da porta ao lado. Meus convidados gays eram realmente encantadores.

DW: O curador do Comitê Central não se sentiu desconfortável com você acompanhando homossexuais?

Quando eu expliquei a ele que tipo de convidados nós tínhamos, ele pôs as mãos na cabeça. “Talvez devêssemos informar o camarada Kapitonov?”, perguntei, ao que o curador respondeu: “Vamos levar isto até o fim, colocá-los no avião, dar adeus e depois ganhar um bônus.” A partir daquele momento, ele nos acompanhou para almoçar no Metropol. Quando nos despedimos no aeroporto, nos abraçamos, beijamos e choramos. Eu realmente recebi um bônus. E quando o curador do Comitê Central do PCUS me viu mais tarde, calmamente me perguntou: “Como você está? Você se recuperou? Nós certamente agimos da forma correta!”

DW: Ele era da Inteligência Soviética da KGB?

Claro. Mas no final dos anos 70, tudo já estava corrompido, incluindo a KGB (serviço secreto soviético). Seus funcionários estavam mais interessados em roupas, dinheiro e tudo mais. Mas os gays alemães não confiavam muito nele. Eles me disseram: “Você tem certeza de que esse homem realmente tem simpatia pelo movimento gay?” Eu disse: Se ele fosse contra, teria nos traído há muito tempo, mas ele não o fez.

DW: Então seus superiores não sabiam de nada?

Não sei se ele deu alguma informação ao camarada Kapitonov. Ficou claro que nós mesmos não deveríamos informar ao secretário do Comitê Central do PCUS que ele havia convidado gays a Moscou. Tudo foi feito à maneira soviética. De cima para baixo, era uma prática comum manter duas crenças opostas simultaneamente.

 

Dw


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